quinta-feira, 24 de maio de 2012

As consequências do medo


         Escrevo a partir da leitura de um romance ficcional: “Nêmesis” – de Philip Roth, editado pela Companhia das Letras.
         A história se passa no verão de 1944, durante a Segunda Guerra Mundial. A cidade de Nova Jersey é assolada por um surto de poliomielite, ameaçando as crianças da cidade com a paralisia e a invalidez permanente, quando não com a própria morte.
         Sobre este pano de fundo, o destaque é dado a um homem jovem, Bucky Cantor, de 23 anos, responsável por um pátio de recreação de uma escola. É a história da tragédia pessoal desse homem, tomado pelo medo e pela culpa. E aqui eu proponho uma inversão: é a história de como um homem tomado pelo medo e pela culpa, invadido por esses dois sentimentos, entregue a eles, transformou sua própria vida numa imensa tragédia.
         No início do surgimento dos primeiros casos de adoecimento das crianças, ou seja, diante do acontecimento grave, Cantor se posiciona frente a um grupo de mães muito assustadas: “Olhem, vocês não devem se deixar dominar pela preocupação ou pelo medo. O importante é não infectar as crianças com o germe do medo.”
         Destaco aqui uma primeira disjunção entre o germe da poliomielite e o germe do medo. Essa é a questão que vai permear o relato. Sem desconsiderar a existência de que algo se deu num organismo humano, produzindo efeitos dolorosos (houve realmente uma primeira criança que apresentou os sintomas da doença), na seqüência, quase não dá para saber se a poliomielite se alastrou ou se o pavor criado pela possibilidade de que outras crianças poderiam contraí-la configurou o alastramento dos casos.
         É muito simplista o raciocínio de que um surto é um surto e não tem a ver com o medo. É necessário considerar que o medo cria condições favoráveis de fragilidade, debilita o organismo, leva inclusive a uma precipitação – as pessoas passam a sentir aquilo que alguém que realmente adoeceu apresentou como quadro clínico.
         É bastante comum a experiência de se ter contato com alguém doente e passar a sentir os sintomas que aquela pessoa apresentou, e, com isso, desencadear uma procura por exames, por checagens, que, às vezes, tomam um rumo sem fim, até que se encontre algo no corpo: algo que talvez não se manifestaria nunca; algo que é apenas uma singularidade – uma pequena diferença dos padrões geralmente encontrados. E, a partir desse encontro, cria-se uma doença a ser tratada. Ou seja, uma particularidade que foi encontrada pela via do medo, passa a ser lidada como realidade.
         Volto à posição de Cantor. Num primeiro momento, ele sustenta a importância de que a população não se deixe levar pelo medo. Após o alastramento da epidemia, há uma mudança nele. Ele, diante da impossibilidade de compreender as razões de tanto sofrimento e tantas mortes de crianças, passa a tomar para si a culpa pela transmissão da doença. Nesse processo, ele é tomado pelo medo e adoece também. Abre mão da mulher amada, abre mão de todas as satisfações e projetos. Não podendo compreender o que, por si, é incompreensível, não podendo colocar a culpa em outras pessoas ou em Deus, culpa-se e se destrói.
         Talvez fosse mais interessante suportar o incompreensível, o inexplicável, o contingencial da vida. E apenas lidar com isso. Seria suficiente. Talvez não seja necessário fazer a multiplicação da desgraça, essa conta sempre é realizada com os elementos do medo e da culpa. 

Elisabeth Almeida- psicanalista
bethxxxalm@yahoo.com.br


Um comentário:

  1. Beth,escrevo a partir do nosso encontro de quinta:frente à alguma coisa que não temos como controlar,buscamos pelo menos uma explicação,uma causa possivel para culpar pelo fato.Se não a encontramos,viramos o gatilho contra nós mesmos,pelo que fizemos ou não fizemos. Dai para frente é combustível puro para remoer culpa,arrependimento,cobrança, e todos estes sentimentos detonadores de qualquer tentativa de leveza na vida!

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