segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Quase palavras




    Acabei de assistir ao filme “O Discurso do Rei”, que fala sobre amizade e os enfrentamentos que se é possível fazer a partir dela. Fala de um rei que sofre com os sintomas de uma gagueira e de um plebeu que acreditou ser possível fazer algo a esse respeito.                    

     Há 17 anos tenho uma “clínica de gagueira”. Ela foi instituída ainda no período de estágio, por meio de um projeto no qual acolhemos pessoas de diferentes faixas etárias e condições sociais, vindas de diferentes partes do Brasil, com um quadro de gagueira. Foram inúmeros atendimentos, ao longo de dois anos e meio de estágio, o que me proporcionou lidar com uma diversidade de questões. Em princípio, tentei enquadrá-las nos muitos conhecimentos técnicos sobre o assunto. Mas muito rapidamente deixei “os enigmas” de lado para atender aos pacientes em sua demanda de falar sem os bloqueios, as hesitações e as repetições, que prejudicavam ou impediam a sua comunicação.        

     O paciente disfluente chega para o tratamento fonoaudiológico muito parecido com o que é mostrado no filme. E os terapeutas que os recebem também adotam posturas muito parecidas com as mostradas no filme.

     Os pacientes chegam trazendo as marcas da gagueira, dentre elas, a marca da impossibilidade. Eles chegam para tentar, não tentar, chegam para mudar, para não-mudar,... ou seja, chegam pedindo cumplicidade para se assumirem gagos ou fluentes. Mas nem sempre os terapeutas estão atentos a essas diferenças ou moldam-se para lidar com a diversidade humana.   

     Os terapeutas têm a tendência de analisar os sintomas com o foco na cura. E alguns ficam tão onipotentes nessa função que chegam a asfixiar os pacientes com pedras esterilizadas. Uma dessas pedras é que a gagueira não tem cura, mas que se as técnicas forem corretamente utilizadas, poderão “facilitar a vida”. O que um terapeuta pode saber sobre os limites do paciente? E como saber o que facilita ou dificulta uma vida? Quem garante que não-gaguejar facilita uma vida? E quem garante que gaguejar dificulta?

     Se eu acredito na cura? Acredito nos homens e na sua capacidade de recuperar o que queiram de si, inclusive a fluência. Alguns conseguem isso em uma sessão. Outros precisam de um longo percurso de enfrentamentos, ousadias e experimentações, para poderem colher os frutos, não só de uma maior fluência, mas de uma maior apropriação de si.

     Nesse sentido, o terapeuta não é o dono do mapa, mas parceiro de trilha. Como no filme, ele marca o ritmo, aponta para as notas que ressoam ou destoam e isso inclui, às vezes, mostrar as suas próprias hesitações, bloqueios, prolongamentos e dissonâncias.

     Como foi bonito ver no filme o terapeuta, diante do “eu sou gago”, mostrar os outros “eus”, possibilidades para além do ser “gago”. Como foi bonito ver a utilização dos recursos terapêuticos, numa parceria de confiança e entrega. O terapeuta reconheceu um rei e teve a coragem de distinguir e bancar o que era importante, afastando o que não era e poderia atrapalhar. Foi pelo olhar atento ao outro que ele pôde transformar uma luz vermelha que acendia e gerava o medo, que bloqueava, em apenas uma luz que piscava para ajudar.

     Ainda esbarro na clínica em reis e plebeus que não querem abrir mão da gagueira ou querem, mas não acreditam que possam. Ainda esbarro em valentes que querem, acreditam e lutam por isso a cada sessão. Esbarro também em tiranos que gritam: - “Cure o meu filho” ou “Cure-me”. E infeliz dos terapeutas que ouvem os gritos como cantos de sereia, tomando para si a responsabilidade de “curar o paciente”. Pois esse canto naufraga terapias, afogando as possibilidades do terapeuta e do paciente. E acreditem, ainda esbarro em mim: na dificuldade de bancar, junto com o paciente, os seus limites. Pois o limite de uma terapia não está atrelado aos limites dos recursos terapêuticos, mas aos limites do outro.

     Tenho um paciente que comecei a atender criança e hoje ele é homem feito, que corta a cidade de bicicleta, toda a semana, faça sol ou chuva, estando ele com febre ou braço quebrado, rumo a sua sessão. O dinheiro que consegue é para a manutenção da bicicleta, o que faz questão de me dizer nas suas curtas narrativas. Quando pontuo que eu já esgotei com ele os meus recursos terapêuticos e retomo aos encaminhamentos possíveis, ele responde chegando pontualmente para sua sessão.

     São histórias como essa que mostram que uma clínica não é feita somente de auxiliar o paciente a anunciar uma guerra ou intitular-se rei. A clínica é feita de enfrentamentos diários que se impõem e se renovam a cada sessão. E quer desafio maior do que vencer o medo de falar, qualquer coisa, a qualquer momento?

Ana Paula Guimarães Garcia

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