segunda-feira, 30 de maio de 2011

Sondando a beleza

           A escolha amparada no desejo tem cheiro de loucura. Pierre Rey, em Uma Temporada com Lacan, relata que na Roma antiga, quando um camponês, sonhando atrás de seu arado, saía por inadvertência do sulco, os outros, para preveni-lo, gritavam: De lira! – está saindo do sulco! O sulco é o caminho marcado, instituído, normatizado, compartilhado. Fora do sulco, fora da linha, fora da norma, no ninho do desejo, a escolha é assustadora – tanto para quem a assiste, quanto para quem a faz.
Ancorada no campo do instituído ela se apresenta vestida de sentido, que, como tal, é sempre compartilhado por outros, ficando a escolha amenizada. Ancorada no campo do desejo, portanto, desvestida de sentido, qual poderia ser sua veste? Será que necessariamente precisa, além da dureza do irredutível que porta, mostrar-se nua e crua? Será que ela não pode, além de exalar o inevitável cheiro da loucura, apresentar-se contornada pelo manto da beleza? Não será a beleza algo a ser invocado no momento duro da escolha? Não portará esse momento, por si, algo da beleza?
Até que ponto os monges do filme “Homens e Deuses” cantavam para adquirir forças ou faziam de seu canto, belíssimo, um manto que envolvia a escolha?
         Sabemos de nossas tentativas de atrelar a escolha à felicidade. Sabemos que o peso é colocado na pergunta: serei mais feliz assim ou de um outro jeito? Sabemos do impasse que isso traz. A felicidade se apresenta desvanecida, tanto de um jeito, quanto de outro. Ou seja, não dá para usá-la como parâmetro. Distanciados da possibilidade de contabilizar a felicidade podemos recusar, portanto, a escolha ou fazê-la cedendo ao irredutível de nosso desejo – como que dobrados à força dele.
Pouco consideramos a possibilidade de conjugar a escolha com a beleza. Aliás, o que é a beleza? Sempre vista como algo pronto, a ser admirado, invejado, cultuado, ela é pouco percebida como algo que se produz na diferença, na singularidade, como algo ao alcance de cada um que se propõe a entregar de si, apesar do estranhamento, da solidão, do cheiro de loucura.
Uma escolha é um ato de criação. Uma escolha é um salto no escuro, sem garantia de felicidade e sem amparo na razão. É um ato que se sobrepõe, que insiste em nascer, em se inscrever, usando daquele que porta um ilusório “eu” e ilusórias certezas – tal como a terra é usada pela semente que eclode, muitas vezes, contrariando as razões, as esperanças e as ilusões.
A beleza da escolha pode ser vista quando alguém se propõe a entregar de si, ao invés de aniquilar-se; se propõe a inventar, a criar, ao invés de ficar na dificuldade; se propõe a viver, ao invés de tecer esboços de mortes ou mesmo a própria morte. A beleza de não se morrer em vida, pois sabemos que pode-se sim fazer isso, pois existe a morte da vida, mas existem também as mortes intelectual, sexual, afetiva, criativa, entre outras possíveis.
A entrega de si à vida – que exige a invenção de respostas onde nada aponta o caminho, onde o túnel não tem fim, nem luz, sob a forma seja lá do que for – é da ordem da beleza. E essa entrega pode recorrer à beleza como amparo, como vestimenta, como parceira.

(texto elaborado a partir do encontro do dia 10 de maio de 2011,
com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

2 comentários:

  1. Beth,
    A beleza que se coloca na escolha traz leveza...
    Adoro ler os seus textos e acabo, por assim dizer, apreendendo-os.Bjs

    Miriam

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  2. Beth,
    É incrível como você consegue ser clara, profunda, ao ponto de suas palavras fecharem o tema sem qualquer resquício de sobras ou ausências. Não fica aquém nem além, fecha...
    (Acaba não sobrando muita coisa para dizer)
    Um grande abraço.
    Eliane.

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