segunda-feira, 7 de março de 2011

Relâmpagos, estranhamentos e o Aleph


Lado a lado: Alessandro Baricco (“Los Bárbaros – Ensayo sobre la mutación”, 2006) e Gene Sharp (“Da Ditadura à Democracia”, 1993).
Lemos Baricco hoje, 2011, e lemos Gene Sharp em entrevista na Folha de São Paulo, em 21 de fevereiro de 2011. Ainda na Folha a história de Ahmed Maher, revolucionário virtual, em 22 de fevereiro de 2011, e o artigo “A religião do chefe”, de João Pereira Coutinho, dia 1 de fevereiro de 2011 – nos lançamos ao trabalho.
As atenções do mundo estão voltadas para o que ocorre nos países árabes e no Oriente Médio.
O que nos ensinam esses acontecimentos?
Impossível não lembrar de Jorge Luis Borges, em seu fascinante conto “O Aleph”, 1957: “Vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra, outra vez o Aleph e no Aleph, a terra”. Nesse conto, Borges nos apresenta a idéia da possibilidade de que “o todo não é maior que qualquer das partes”, e que um ponto mínimo contém todos os pontos. O macro contém o micro, o micro contém o macro.
Algo se dá em nosso mundo mais amplo neste momento. Com certeza encontramos aqueles que se horrorizam e procuram soluções de contenção para os “bárbaros” que estão saqueando os poderes milenares. Com Baricco, os bárbaros aqui estão. Eles já mudaram o mapa. Não há contenção possível, nem nada a conter. Esse é o ponto.
Voltemos os olhos para a psicanálise.
Lacan já apontava a queda do mestre. Nós podemos ter a experiência disso a todo momento. O mestre cai. E quebra. O saber cai. Isso vale tanto para o outro, quanto para mim.
Diante disso, posso perguntar: qual a posição que eu ocupo, quanto dou consistência, quanto encho de certeza o meu lugarzinho de poder, de saber? Quanto acredito nisso?
E ainda: como lido com minhas quebras, com os saques que o outro (aquele bárbaro...) faz a cada momento em meu território, mudando meu mapa?

Nossa resposta vai na direção de que o que nos interessa no momento são as parcerias, as construções em conjunto e o amor. Ressaltamos a importância de se estar esvaziado para não se seduzir com as máscaras, sejam elas a do ditador, a da vítima ou a do líder. Esvaziados podemos constatar que “somos o nosso entusiasmo, os nossos amores, as nossas invenções” ( Márlio Vilela Nunes).
Curiosamente encontramos no artigo “Religião do chefe” que “a vontade de poder pode ser ofensiva para muitos espíritos. Mas a ausência dessa vontade é ainda mais”. É interessante pensar nessa “ofensa” que advém da ausência da vontade de poder. Diante do oposto, ou seja, diante da “vontade de poder” a resposta ofensiva é da ordem da reciprocidade, do “toma aqui, dá lá”. Fácil. Agora, frente à ausência dessa vontade, o sentir-se ofendido vem da sensação do inesperado, do surpresivo que é encontrar-se diante de alguém que não se coloca como mestre, como sabido, como poderoso. Nas palavras de Ahmed Maher, esses são “aqueles que aprenderam a subtrair o medo”, e como nos servem essas palavras! O medo sustenta o poder do outro, o medo sustenta a posição do medroso, sustenta o medroso na posição de quem precisa exercer a vontade de poder. Acontece que isso se sustenta enquanto durar o medo. Somente enquanto. Depois, não mais. Depois, não tem mais lugar para o outro poderoso, não tem mais lugar para o eu que mede forças. Tem lugar para o “bárbaro” de Baricco.  Ele é, entre outras coisas, aquele que um dia pensou: “Será que eu não estaria melhor dentro d’água?”
Paradigma que pode ser aplicado a qualquer situação onde uma pessoa, num dado momento, se pergunta por algo diferente do que ela vem vivendo até então. Pode ser aplicado a um jovem que pensa em organizar movimentos pró liberdade, que faz uso de uma página no Facebook usando a rede social como arma de mobilização. Pode ser aplicado a cada um de nós em situações específicas.
Quem de nós nunca pensou, de repente, diante de uma situação: “será que eu não estaria melhor de um outro jeito,...?”
E quem não experimentou logo em seguida, bem rapidamente, a sensação de estranhamento de si tomando conta de si mesmo? “Que coisa idiota essa que eu pensei! Imagina: melhor dentro d’água,...”.
O pensamento inicial vem como um relâmpago. Vem como uma explosão de luz e rapidamente essa luz desaparece dando lugar a uma sensação desconcertante.
Alessandro Baricco escreveu “Los bárbaros” na pressa do relâmpago. Não hesitou. Ahmed Maher teve vontade de mudar e usou a internet como ferramenta para mobilização de manifestações para a liberdade. Evidentemente, em proporções diferentes, singulares, cada um de nós pode pensar em exemplos pessoais, em momentos decisivos de vida.
As coisas mais decisivas para nós geralmente se apresentam como um relâmpago. Ou confiamos nele, ou negamos a resposta.
Se depender do nosso julgamento, da nossa avaliação, não fazemos. Acharemos “idiota”. Ou recobriremos com o medo. Com o cobertor do medo, com a tenda do medo, com a desculpa do medo. Talvez por isso também uma análise demore. A cada relâmpago, o movimento de encobrimento, feito com violência, com horror, usando da racionalização para justificar a inércia.
E mais, se algo parece estranho a mim, se meu “relâmpago” me assusta, quem dirá ao outro! Se entramos nessa demanda de que o outro autorize nosso relâmpago, de que o outro suporte o risco prateado que ele faz no céu, o rasgo na escuridão da noite... não, não haverá relâmpagos. Seguramente, aquilo que eu não suporto, o outro não vai autorizar.
Se eu suporto o que em mim é estranho para mim, o outro vai estranhar menos. Um pouquinho menos. Mas relâmpagos são manifestações estranhas mesmo.  
E o estranho, tão maravilhosamente mostrado por Freud, é aquilo que em mim, é o mais familiar a mim, é o mais íntimo de mim. É ouro puro, que não dá para entrar na reciprocidade do “você me entende?”. É ouro puro a ser suportado e inscrito no mundo, diante do outro, perplexo ou não, autorizando ou não. É permissão para brilhar, se desejar e quando desejar.


Elisabeth Almeida
(A partir do encontro de quinta, 24 de fevereiro de 2011, com a colaboração de Ana Paula Guimarães Garcia).  

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