segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Passar a vida colando coisas no umbigo

Quinta, 10 de fevereiro de 2011

Com os olhos postos no horizonte de Baricco, nas mutações, inevitavelmente nos perguntamos pelas nossas.
Tocados pelo trabalho realizado na terça, dia 8 de fevereiro, construído sob o texto de Denis Diderot (1713-1784), “O paradoxo do comediante”, cujo comentário mais aprofundado poderá ser encontrado no Projeto “As Patologias do Amor”, trazemos para cá alguns pontos.

Temos trabalhado o que seria a “nudez” na vertente do esvaziamento do imaginário, da quebra narcísica. Não nos esqueçamos de que se a colocamos num lado, no outro temos que colocar as máscaras necessárias que nos permitem transitar no mundo.

Essa nudez não envergonha porque ela não está atrelada a nenhuma condição, sendo a vergonha, na maioria das vezes, um sentimento de inadequação, expressão de que haveria “um jeito certo de ser” ou “um jeito certo para isso”.

Inadequados somos, sempre. É a marca da nossa diferença que se instaura aí. O que pode comover, no sentido de tocar o outro é a nudez.

Sustentando a diferenciação feita por Diderot de que “Ser sensível é uma coisa, sentir é outra”, colocamos a sensibilidade ao lado desta nudez. Despidos, somos sensíveis. Vestidos com idealizações, sentimos. E concordamos com Diderot, sentimos baseado em julgamentos, em premissas não questionadas, em conversa ouvida. Sentimos e Lacan já nos apontou: Le sentiment (que lemos: “çantimãn” e escutamos: Le senti ment – que nos remete a: o sentir mente).

E mais, ganha luz frente a isso a angústia – “único afeto que não mente”. A experiência da angústia é uma experiência pura, portanto dura, desatrelada de julgamentos. Diferencia-se da tristeza, por exemplo, que sempre vem acompanhada de um “estou triste porque...”. Angústia não. Angústia é uma experiência frente a algo que do real nos vem e nos pega no corpo. Algo a fazer, nos convida, nada a queixar, nos ensina.

Voltamos aos sentimentos. E ao fato de que os terapeutas muitas vezes querem tratar os sentimentos dos seus pacientes. Ou querem responder aos pacientes a partir dos sentimentos provocados por estes, neles, terapeutas. A isso chamamos o uso da contra-transferência por parte do analista no tratamento analítico. Esse foi um dos pontos privilegiados por Lacan no seu retorno a Freud, tendo ele assumido uma posição contrária ao uso da contra-transfêrencia – uso este tão difundido entre os pós-freudianos e tão nocivo sob a lente de Lacan.

Juntemos agora o sentimento e a interpretação. A interpretação vai na mesma direção que o sentimento. Ambos são frutos do julgamento. Quando eu sinto é da ordem do julgamento, quando eu interpreto, também. Ambos são imaginários, não têm sustentação no real.

Acrescentemos a esses mais outro imaginário que é “o corpo que fala”. O corpo não fala. Ou, pelo menos, não fala palavras. E são elas que nos interessam.

Interpretar é ser reativo ao que se escuta ou ao que se vê. Vamos nos deter no que se escuta. Se eu interpreto é porque eu peguei a palavra do outro para mim, dei um sentido a ela, e devolvo-a. Deixo claro que estou pegando esta questão por uma vertente muito específica. A questão da interpretação pede muito cuidado, mas, nesta vertente, ela produz estragos. Explico: se eu pego a palavra do outro, pronto. Ele se desimplica dela. Dito de outra maneira, quem arca com o peso, o eco dela, sou eu, e não ele. E cabe a quem diz arcar com tudo isso. Arcar com a palavra que escorregou da sua boca. Ela é de quem a diz. E na maioria das vezes, não é para quem a diz.

Se eu pego o que é seu, seja sua palavra, sua irritação ou algo que você não deu conta, fico eu irritada ou fico eu com algo que é seu, você “fica de boa”. O que vem do outro, é do outro. Se o que você diz eu colo em mim, colo no meu umbigo, vou passar a vida colando coisas no umbigo.

Se o que é seu eu pego para mim, é como se você espirrasse e eu me lambuzasse com o seu espirro. Quem fica sujo como um porquinho sou eu e você fica sendo o porquinho de banho tomado.

Neste ponto somos remetidos à questão constituinte do humano pelas reflexões de Gerusa Marquesini do Prado: “A mãe põe coisas no corpo, nos mergulha no simbólico. Ao propormos não pegar a palavra do outro poderíamos pensar que seria equivalente a nos livrar de algo que é da nossa própria fundação. Talvez por isso essas teorias caiam tão bem!”

Prosseguimos. Sim, há um primeiro momento fundante. Mas nele o equívoco já está presente. Por exemplo, o bebê chora. A mãe dá o peito, tira um pouco das roupas, põe meias nos pezinhos, nina. Se ela soubesse, ela faria uma coisa só. Mas mesmo sem saber, acontece dela dar o peito, o bebê se acalmar, e ela dizer: - “Viu? Ele estava com fome”! Quem garante? O bebê poderia ter se acalmado pelo prazer que sentiu ao sugar,... e não porque a barriga estava vazia.

O equívoco, o mal entendido vai nos acompanhar pela vida afora. É bom saber que isso é constituinte, que podemos navegar nele, lidar com ele, sem recusá-lo, sem acreditar nas palavras e ao mesmo tempo fazendo uso delas. Afinal, nossa carne é tecida por palavras.

Continuamos na próxima quinta.

Elisabeth Almeida

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