quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Miragem encarnada ou o canto da sereia

           Tenho culpa eu de que sereias cantem?
          Tenho culpa eu  de que seu canto me encante?
          Tenho eu que me amarrar nos mastros, tampar os ouvidos, e atravessar os mares contornando os cantos?
          Tenho culpa eu de ouvir o canto?
          De me encantar com o canto?

          Eu sei de poucas coisas... sei que quando acredito nas lendas, que se propõem "sábias", que recomendam bom senso, não saio viva.
          Sei que encaixoto o canto e junto com o canto, meu encanto, e aí... só me resta partir.
          E que parto atormentada. Parto amarrada em caixas fechadas, lacradas, empilhadas.
          E que quando sou obrigada a abrir as caixas, saio de lá mais triste, mais pobre, levo um tempo chorando sobre elas.
          E continuo a viagem, com um poço a mais a me assombrar, um poço que retorna nos meus sonhos, noite após noite, me olha. Me olha com seus olhos líquidos de beleza, com sua textura delicada, com sua profundeza, sua cor, seu som, seu sabor.
          É estranho quando a vida começa a portar imagens de um poço que atormenta. Isso deveria me ensinar que os poços têm alma. E que quando a minha alma  encontra a alma deles, recuar é perigoso. Mais perigoso que todos os perigos que eu contabilizo para não entrar nele.
          É estranho quando a vida começa a portar sons do canto das sereias. (Até porque, nada mais comum do que encontrar pessoas que entram, mergulham nos poços, mas sobre as sereias... há muito sabemos que seu canto leva os viajantes do mar à morte...)
          E a vida me trouxe o canto das sereias. Está posto. (não é por acaso que você me diz: é miragem.) ( E que eu te digo: eu sei.)

          Que culpa tenho eu se já sei que se me amarrar nos mastros morro um tanto?
          Que culpa tenho eu de acreditar que posso ouvir o canto, permitir o encanto, atravessar o espaço da moradia das sereias sem me amarrar, e seguir viagem, mais viva que antes?
          Que culpa tenho eu de achar que as sereias continuarão cantando, e que durante minha passagem, aberta ao canto, - por estar eu tão tocada pelo canto, tão encantada por ele, sabendo que é miragem, me permitindo ouvir, - elas continuarão cantando, com seus olhos líquidos de beleza, com seu som de profundezas... e que eu poderei levar comigo, para os meus sonhos, noite após noite, esse canto que encanta e me relança ao mar aberto... sem tirar nada das sereias, ou tirando apenas a certeza que elas tinham equivocadamente de que por serem imortais e serem miragem, seriam mortíferas.
          Que pretensão a minha essa de querer algo com as sereias.

          Mas que culpa eu tenho de, lançada ao ar... chegar no mar... trombar nas sereias... me assustar e ao mesmo tempo não suportar correr delas... descrer das lendas... dos avisos de perigo... crer nas miragens... sabendo que o são.  

Elisabeth Almeida

3 comentários:

  1. Querida Beth,



    Arregalei os olhos quando li no corpo do seu e-m que aquele anexo com um nome sugestivo era um texto seu. Preparei-me para deliciá-lo e assim o fiz. Havia algo ali muito familiar, de fácil compreensão. Mas havia também algo inesperado, trechos que precisavam ser lidos com outros olhos. Digo: com os meus olhos. Não o de quem vê uma miragem!! (risos!)

    Eu já a ouço faz tempo. Venho até materializando algumas de suas falas em meus textos. Faço isso com a consciência de que construções são feitas com materiais, mas a mão de obra é nossa. A linguagem nos constrói. E a sua linguagem é de alguém que já foi encaixotada, sentiu o impasse diante do poço; já adormeceu no embalo hipnótico das embarcações e acenou com lenço branco quando viu a embarcação partir sem você. Na ausência de ventos, vai montada no lombo do burro ou pede carona no avião a jato! Encantadora, só poderia ser sereia,... ou uma miragem encarnada!

    Você escreve suave como canta. Há delicadeza em você,... e há também muita riqueza. Na forma com que escreveu, conseguiu produzir uma coisa bonita, verdadeira e reflexiva.

    Seu texto emergiu do oceano que é você. Para mim ele traçou mapas do Triângulo das Bermudas,... e seus perigos. Em alguns trechos, reconheci o traçado da rota. Já afundei navios por lá e naufraguei também. Sim, faço parte do covil dos piratas, mas ainda enjôo em alto mar, choro sobre caixotes no porão dos navios, enxergo rochedos onde há terras, ilhas onde há um vasto continente. E daí você surge com sua luneta e grita: - “Terra a vista!”, no exato momento em que estou presa no movimento das águas pela rotação das hélices do motor,... me despedindo das terras do sul.

    Sou sim enfeitiçada pelo seu canto, mas não na vertente da morte, mas de quem curte o espetáculo, o aplaude e fica pensando sobre as coisas que leu,... se construindo.

    Beijos,

    Ana Paula

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  2. Beth : que saudade de você!Encantador seu texto.Mostra tanto de você!Do caminho que abriu na minha vida com tanta competência,mostrando como é bom passar pelos encantos da vida sem medo e sem muito bom senso.
    Quantas delícias eu teria perdido se ainda tivesse culpa por não ter medo dos cantos que encantam...como é bom me deixar levar pela tempestade sentindo o vento forte. Depois disso o medo do escuro me faz forte ao raiar do dia. E o melhor disso tudo é ter aprendido a aproveitar o que, hoje eu sei , já fazia parte de mim.Quero agradecer ainda cada momento maravilhoso que você me proporcionou por fazer parte,mesmo que ocasionalmente, desse grupo maluco e desalinhado ,cheio de poetas ,pessoas sensíveis e encantadoras que como você ,puseram brilho nos meus olhos.Com certeza estarei com vocês no dia 8,não há possibilidade de tapar os ouvidos diante de seus cantos...
    Até lá,
    bjs,
    Lívia

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  3. Lívia, sim, os encantos e os cantos da vida sempre fizeram parte de você. Que bom encotrá-la neste espaço, sempre bom encontrá-la nos espaços da vida!bjs, Beth

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