terça-feira, 1 de março de 2011

Não inventamos a galinha, nem o ovo.

Sob nossos pés, sustentando nossos saltos e vôos, Los bárbaros – Ensayo sobre la mutación”, de Alessandro Baricco. A rede é tecida com esta obra, com um tema – “As Patologias do Amor” – e a leitura que fazemos de “Medéia”, de Eurípedes. Mais uma vez incluímos um texto de Contardo Calligaris entre os fios de nossa tecitura – Para quê servem bonecos e bonecas? – publicado na Folha de SP, dia 10 de fevereiro de 2011. 

 “(...) bonecas e bonecos não servem apenas para propor ideais deprimentes de tanto que eles estão fora do alcance da espécie humana, eles servem para tornar esses ideais acessíveis. Como assim? Simples: é graças aos bonecos que cada criança pode mutilar, despedaçar e queimar os ídolos que lhe são propostos”.

Acompanhamos o desenvolvimento da questão proposta por Contardo Calligaris, agora em seu twitter, referindo-se àqueles que não destroem os bonecos:

“(...) ou seja, os bonecos e os brinquedos intactos são os seres maravilhosos e amados que as crianças gostariam de ser para os adultos.”

“Há crianças sofridas que protegem seus bonecos porque eles são encarregados de viver a infância protegida da qual eles são privados”.

Com esses elementos podemos mapear alguns espaços da experiência humana: mutilar, despedaçar, queimar ídolos que lhe são propostos; proteger simbolicamente algo do qual se percebe privado; amar, suportar ser amado e/ou desejado, suportar as quebras narcísicas que se dão quando se ama e quando se é amado. Entramos hoje neste território. Nossa pergunta: Qual a coisa fundamental a ser suportada? Nossa resposta: a si próprio. Amamos o quanto conseguimos suportar de nós mesmos. “Agüentamos” o amor do outro o quanto conseguimos nos “agüentar”. E isso vale para nós e para o outro, que por sua vez, também consegue estar ao nosso lado, até onde pode.



       Primeira conseqüência extraída: é fundamental que alguém se suporte. Isso requer fazer uma disjunção entre “essência” e “função”, onde essência é um “eu sou” e “função” é um “papel”, uma “escolha de ofertar-se como algo”, uma “impostura”.


        Segunda conseqüência: para que alguém se pense fora de um “eu sou” propusemos a possibilidade de pensar que somos “habitados” pelas possibilidades, múltiplas, que constituem o humano. 


       Se uma pessoa se fixa na “essência”, isso acarreta algo de imutabilidade, de rigidez, de “preciosismo”, algo bem narcísico. Quanto mais estruturado o “eu sou”, mais impermeável a quebras. Só que, essa postura defensiva gera um endurecimento que produz a quebra, por falta de flexibilidade. E a essa pessoa será mais difícil se deparar com as quebras e com as rachaduras que o tempo todo a vida nos provoca.


        Por outro lado, se alguém se veste de uma “função”, tendo para si, com clareza, que é apenas o uso de uma de suas possibilidades (uso e não essência), essa pessoa pode dirigir sua energia criativa para isso, pode suportar os confrontos, pode não se ocupar com o outro, pode fazer parcerias com o outro.


        Esses, “que se ocupam de funções”, podemos pensá-los como “Os bárbaros”, de Baricco. E eles,... eles já estão aqui. Vamos olhar nos olhos deles, vamos sair dessa de tentar entender quem são os bárbaros. Vamos desenhá-los, como Baricco propõe. E, diga-se de passagem, fazer isso é fazer um contraponto à filosofia.


       Voltando às “funções”, constatamos que nós, quando nos oferecemos a ocupar o lugar de psi,... ou de terapeuta, somos demandados a partir de um determinado lugar, o tempo todo. Mas, assim como todos os lugares, esse é um lugar ilusório, “uma impostura” necessária. Necessária porque pode oferecer ao mundo um dispositivo outro além da religião, além do inútil bom senso, além de receitas e regras de conduta, além de diagnósticos e remédios, além de conselhos. E só pode oferecer algo diferente porque o faz passando longe do lugar do “mestre” sabido.


        Na clínica, o “amor pelo saber inconsciente” – aquele conhecido desejo de saber coisas, acessar lembranças, descobrir os famosos “traumas” que, quem sabe, me livrariam de mim! – pode ser acolhido. Pois, na clínica, constamos que mais do que qualquer saber, a pessoa quer saber do seu inconsciente. Algumas pessoas sentem necessidade de endereçar esse desejo de saber a alguém, no caso, ao “psi”, ao terapeuta. Se ela o faz – no sentido de procurar alguém que possa ouvi-la sobre isso – e se ela for acolhida, então haverá provavelmente uma análise. No entanto, necessário se faz que, aquele que a receba sustente esse lugar “sem vestir a roupa do saber”. E isso deve ocorrer para permitir que um dia, depois de percorrer o caminho, a pessoa possa desistir dessa busca e passe a se ocupar do próprio exercício de viver.


      Muitas vezes porém, essa “desistência” é uma desistência precipitada. E aqui marco a diferença entre alguém que encerra uma análise porque se precipitou e de alguém que a encerra porque desistiu de procurar um saber que resolveria sua vida. Por desistência, a pessoa precisa ter ido até o osso dessa procura.


       Mas, na verdade, cada um leva uma análise até onde quiser,... e, segundo Lacan, até onde o analista tiver ido. E Lacan também formula, sobre o final de uma análise, entre outras maneiras de expressar, que haveria um sujeito “desabonado” do inconsciente – o que significa que o inconsciente não assinaria mais por ele, não poderia mais ser considerado o “responsável” ou o “culpado” pelos feitos e pelos não feitos na vida. Não se poderia mais dizer, por exemplo: “eu não queria”; “fiz isso ou aquilo inconscientemente”;... E isso seria como dar um basta ao inconsciente como sombra, como algo oculto que me impele, que me desresponsabiliza, que me desculpa frente ao que fiz ou deixei de fazer.  


       Evidentemente, isso é da ordem de uma nova clínica e avançaremos neste desdobramento em momentos posteriores.  


      Ao encerrar, voltamos um pouco mais no mapeamento de alguns aspectos do humano, focando “o amor”.  


      Onde há amor há também ódio. Como pensar o amor fora dessa polaridade? Lembremos que Lacan cunhou a expressão “amorodio”.


      Eu posso colocar o meu amor em você. Isso seria diferente de te amar?


       Se eu te amo (se amo a ti), eu te odeio?


       Posso me colocar tão separada do outro a ponto de colocar o amor em “lugares”?


       Nesse caso, teria importância o que o outro faz com o meu amor?


       Será que podemos sustentar que: “se eu te amo,... conte com meu ódio”?


       Se você me ama, “posso contar com seu ódio”?

Elisabeth Almeida
(com a colaboração de Ana Paula G. Garcia, 
a partir do encontro de quinta, 17 de fevereiro de 2011).

2 comentários:

  1. Bem melhor que Rivotril.........

    De repente me vem esta complexa sensação ¨do outro¨, onde me
    questiono: - o que o outro está fazendo?, - o que o outro está
    pensando?, - onde ele está? ou - o que ele acha?
    Ora, se nem mesmo eu sei o que irá me acontecer ou o que estarei
    fazendo, sentindo ou pensando nos próximos segundos....
    Ainda pensando seriamente sobre isso, entro em meu 3º encontro
    psicanalítico onde mais uma vez o foco é Alessandro Baricco...Ah
    Baricco!!!
    Diversas informações me são trazidas e interligadas ao texto e me vem
    a lembrança de que tudo isso, poxa! , é bem melhor que Rivotril, que
    Alprazolam...
    Volto para casa e por um momento significativo me esqueço da questão ¨
    do outro¨, que me atormentava tanto...
    Bjo, Sil.

    ResponderExcluir