segunda-feira, 11 de abril de 2011

Visitando o jardim dos deuses

            Encontramos no “Banquete”, de Platão, o relato de uma festa onde todas as divindades foram convidadas.  No final desta festa, Pênia, a personificação da Pobreza e da Carência, andarilha por natureza, viu Poros, o Recurso, um deus caçador e ávido do belo. Poros estava embriagado e deitado no jardim dos deuses. Pênia acordou-o e se fez fecundar por ele gerando Eros, o Amor. Desde então, segundo esta origem, Eros transita permanentemente entre viver, morrer e ressuscitar. Portanto, não é mortal nem imortal e também não é sábio, embora ame a sabedoria. Sempre em busca de seu objetivo, como Pobreza, ele sabe imaginar um meio de chegar a seu alvo, como Recurso. Longe de ser um deus poderoso é uma força sempre insatisfeita e inquieta.
Vou eleger esta imagem para pensar como nasce o amor. Na festa da vida, na presença dos deuses todos, que estão sempre convocados a participar, ocorre um encontro, que não foi marcado, entre “um que se sabe pobre” e “outro sobre o qual se imagina ser portador de algum recurso”. Fruto desse encontro: “uma força sempre insatisfeita e inquieta”. Vou destacar que isso se dá entre “um que se sabe pobre” e outro “sobre o qual se imagina ser portador de algum recurso”. E vou aproximar amar de desejar.
Condição para o amor: saber-se pobre, poder supor no outro algo, supor no outro um brilho a mais. Condição para o desejo: saber-se incompleto, faltoso. Que o primeiro se suporte pobre, oferecendo-se sempre ao outro como amante, afinal, amar é a coisa que ele pode fazer, justamente porque lhe falta algo – diferentemente da idéia de que não pode amar porque lhe falta isso ou aquilo. Que o segundo suporte que sobre ele se imagine que tenha recursos. Suporte sem acreditar e, principalmente, sem ficar negando isso. E possa olhar o outro com olhos de quem também é pobre, com olhos de quem também supõe riqueza ali.
Assim, amantes, os dois, pois sabedores de sua falta, suportem amar por causa dela; suportem ir até o outro porque algo lhes falta; suportem que o outro lhe suponha um brilho a mais, sem fazer disso uma recusa, e, também, sem fazer disso uma exigência de privilégios – uma exigência  infindável, a de  ser merecedor do amor por possuir isso que lhe é meramente suposto e que, de maneira alguma, lhe confirma sua plenitude.
Então o amor nasce. Nasce, como um acontecimento.
Em nossa discussão anterior pensávamos a perda como um acontecimento. Passamos da perda pela via de uma morte, as várias perdas possíveis, sendo estas, apresentações da morte, presentificações, lembranças de que a morte existe. Passamos pela morte do amor, perguntando-nos se também ela não poderia ser pensada como um acontecimento.
ACONTECIMENTO: aquilo que está fora do alcance das nossas mãos, fora do nosso controle; aquilo que é desprovido de sentido, a priori, e que, se atrelado a um sentido, geralmente, se inscreve na vertente da culpabilização do outro, de algo, ou de si; aquilo que pode ser qualquer coisa que pode ocorrer em nossas vidas, pelo simples fato de estarmos vivos e estarmos inseridos no mundo. Não estamos vacinados nem protegidos, não temos garantias de espécie alguma.
Nosso trabalho se voltou para a constatação clínica de que muitos temem tudo aquilo que está fora do alcance de suas mãos, fora do seu controle imaginário. Tudo aquilo que é da ordem do acontecimento.
Num primeiro momento nossos olhos pousaram sobre acontecimentos que, de alguma maneira, são experimentados como perdas, onde nos perguntamos, inclusive, se o fim do amor não poderia ser pensado como um acontecimento – sob a imagem de que, também nele, portões se abrem inesperadamente, não necessariamente esquecidos de serem fechados, se abrem, por exemplo, por um vento forte. Agora nos perguntamos pelos acontecimentos que poderiam ser experimentados como dádivas, por exemplo, como marcávamos acima, o nascimento do amor.
Pênia vê Recurso dormindo no jardim, embriagado. Se faz fecundar por ele e gera Eros. Um acontecimento. O amor como acontecimento. O amor como uma das possibilidades que estão fora do alcance de nossas mãos, fora do nosso controle imaginário.
Tanto o acontecimento que experimentamos como perda quanto, o acontecimento que experimentamos como uma dádiva, os dois estão fora do nosso controle. Tanto a perspectiva de um, quanto a de outro, pode ser experimentada com muito medo.
Saímos da relação de dar um sentido ao acontecimento para a relação com o acontecimento possível. Defrontamo-nos então com a presença do medo frente àquilo que não podemos controlar.
Se conseguimos uma outra relação com o acontecimento, de outra ordem, talvez, na suportabilidade de que ele está mesmo fora de qualquer controle possível, de qualquer esforço, de qualquer medida protetora, será que o medo desaparece?
Porque sabemos, não temos medo apenas de que o amor morra, temos muito medo também dele ao nascer.
Não temos medo apenas do que experimentamos como perda, temos muito medo também do que nos vem ao encontro.

(texto elaborado a partir do encontro do dia 29 de março de 2011,
com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

Um comentário:

  1. Beth, obrigada por postar tão belo texto!!
    Estou me deliciando com ele...
    Bjos Jacqueline

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