sexta-feira, 22 de julho de 2011

SOBRE AS POSSIBILIDADES DE SACRALIZAÇÃO E DE PROFANAÇÃO

   “Esse é o problema de olhar para as coisas. Nada é claro. Os nossos sentimentos e idéias moldam o que está na nossa frente. Cézanne queria o mundo nu, mas o mundo nunca está nu. No meu trabalho, eu quero criar a dúvida. (...) Porque a dúvida é a única coisa de nós temos certeza.” Fragmento do romance “O que eu amava”, de Siri Hustvedt, que reencontro e me  encanta novamente. 

     Flashes que se cruzam: a exposição do artista holandês M. C. Escher, no Centro Cultural Banco do Brasil, em SP, e um pedaço de tarde na FNAC-SP, com os Kinect Games. Na exposição, as formas se transformam, dependem do ângulo do meu olhar, do tempo que eu olho; as escadas terminam bruscamente (ou suavemente?), no nada; o fora está dentro, o dentro, fora e a realidade,... o que é isso mesmo? Com os games o corpo é usado literalmente da cabeça aos pés para jogar. Experiência forte de transição para o mundo virtual, onde você é incluído no jogo através de um sensor e, a partir daí, você faz acontecer o que se passa “lá” dentro e experimenta em seu corpo os efeitos, as sensações.

     Qual é o material dessa “certeza” que portamos? Qual o estofo desse registro daquilo que supostamente “é”? O que os nossos olhos realmente julgam ver daquilo que acalentamos como conclusões?

     Mais uma vez uma obra nos aponta caminhos. Para Siri Hustvedt, o mundo nunca está nu. Nossos sentimentos e nossas idéias são então a matéria prima de nossas certezas, das quais nós mesmos desconfiamos, das quais um pedaço de nós sabe do dentro que está fora e do fora que está dentro – nas quais nos  percebemos como fazendo acontecer.

     Como transformar essas certezas em dúvida? Como transformá-las numa dúvida que seria diferente da desconfiança que oscila num ora acredita, ora desacredita? Qual o estatuto disso que chamamos de “nossos sentimentos e nossas idéias”? 

     Talvez, quando para nós o mundo se apresente nu, quando algo se apresente como “certeza”, talvez, nesse momento, nosso olhar esteja sacralizando esse algo. Os suportes dessa sacralização são os modelos prévios, os dispositivos culturais disponíveis, especialmente as normas e regras instituídas e compartilhadas como moral e esteticamente “certas”.

     Dessacralizar, profanar uma certeza, seria uma possibilidade de fazer um contraponto, um caminho de construção de uma dúvida. Curioso movimento esse, já que temos quase por estabelecido que a dúvida deve ser combatida, esclarecida, que “faz bem sair da dúvida”. Vale então distinguir o que seria uma certeza, o que seria uma desconfiança que oscila e o que seria uma dúvida. 

     A certeza, essa coisa adquirida nos moldes dos conformes, geralmente baseada nos meus sentimentos e nas minhas idéias é sempre alucinada porque de consistência mesmo só tem aquela que eu dou. E dou como se eu tivesse uma super-visão, um super-poder de captação da verdade que me transcende, que inclui um saber sobre o outro, um saber sobre a realidade, um desnudamento do mundo.

     A desconfiança, que oscila entre acreditar e desacreditar, entre esperar saber, para depois fazer, sempre lambuzada de sentimentos de impotência, de déficits, de promessas num porvir, escancara a dificuldade e a negação da existência do impossível na vida - impossível que, como tal, permite um fazer, permite e pede, pede e exige uma criação. 

          A dúvida, essa que buscamos, que encontra ressonância numa transgressão da certeza, seria aquilo que poderia ser encontrado nas frestas, nas brechas, nos espaços mínimos que sejam. Ao mesmo tempo, seria o fio que tece a criação e seria tecida pela criação.

     Neste percurso da certeza para a dúvida, nesse esvaziamento da desconfiança, nesse direcionamento para a possibilidade da criação, um desafio maior se impõe: profanar o molde do nosso olhar.

     Nosso olhar é como uma forma de picolé, onde despejamos o líquido e o  congelamos. Ele é como uma tesoura que recorta, a bel prazer, os contornos que lhe convém. É como um par de óculos que colore o que está pela frente, de acordo com as cores da lente. Somos experts em prever,  dizer e saber do olhar do outro. Olhamos o olhar do outro sobre nós e lemos “certezas”. Nessa leitura, moldamos “verdades últimas”. De volta ao dentro-fora, ao fora-dentro de Escher, a leitura que fazemos do olhar do outro sobre nós é a mesma da que fazemos com nosso olhar sobre nós mesmos. Também esse é sacralizado. Também esse é formatado.

     Como profaná-lo? Como quebrar esse molde que origina todas as figuras e define suas cores, contornos, consistências?




(texto elaborado a partir do encontro realizado no dia 5 de julho de 2011, com a colaboração de Ana Paula G. Garcia)   

Um comentário:

  1. Fugir dos moldes, profanar a certeza, desconstituí-la e, como consequência, ver além, enxergar o nu...Fazer o que depois? construir algo neste nu, para desconstituí-lo em seguida?
    Olhar livremente seria assim? E preferir a dúvida à certeza, seria viver livremente? Talvez... Mas, viver na inconsistência te impulsiona ou paralisa? E o principal: o que você quer?
    Beth, você, como sempre, brilhante...
    Sinto saudades das reuniões.
    Um abraço.
    Eliane.

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