quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Como eu posso profanar meu olhar?

            A questão que está posta é como sair das certezas que cristalizam e endurecem nossas vidas e são acompanhadas pela desconfiança que nos deixam impotentes e paralisados. Duas possibilidades serão trabalhadas. Uma é a idéia de que fora da certeza, e da conseqüente desconfiança, podemos nos abrigar numa outra morada: a da dúvida. Outra, que decorre da anterior, é a idéia de que fora da paralisia e da impotência podemos construir nossas vidas na invenção, na criação.
            Para chegarmos à morada da dúvida vamos fazer uma passagem pela morada da certeza. Como podemos pensar a construção de uma certeza?
            Inicialmente, o que eu tenho é a fragilidade de meus saberes – sejam eles sobre mim, sobre o outro, sobre o mundo. É diante dessa fragilidade que vou construir uma morada.
            Se eu olho para o outro, para os outros, para qualquer coisa que esteja na cultura, na ciência, na religião, se eu olho para qualquer coisa externo a mim e me agarro a isso, “acredito” que estou realmente sabendo do que se trata, eu faço disso uma “certeza”. Eu me congelo nessa certeza, eu “sacralizo” isso. Eu a transformo numa cartilha onde fica estabelecido meus “eu devo...”, “eu tenho que...”, sob a forma de um imperativo.  Diante dele eu vou me ajoelhar tal como se estivesse diante de um altar. A partir daí, ao invés de viver, ao invés de mover-me, vou rezar nesse altar.
            Se, por exemplo, “eu sei sobre você” e, de repente, você me surpreende, eu não posso mais ter certeza sobre você. A certeza é frágil e imaginária. Ela se despedaça facilmente.
            Se eu jogo o jogo da vida com a moeda da certeza, diante da surpresa eu fico atravessada pela desconfiança a qualquer momento.
            Tal como a água brota da terra, a desconfiança brota da certeza, umedece a certeza, aparece, inevitavelmente, contamina, se mescla. Da ilusão da certeza passamos rapidamente a uma certeza impregnada de desconfiança. Desconfiança sobre o outro, desconfiança sobre nós mesmos. Nós desconfiamos “de”. A desconfiança me leva a habitar o “fora” de mim. Se eu habito o fora, eu paraliso. E conseqüentemente vou reclamar, sofrer, judiar de mim e do outro.
            É bem complicado o “e aí” da certeza, as conseqüências da certeza. Não que o “e aí” da dúvida não o seja. Para chegar nisso, passemos a ela agora. Como seria jogar o jogo da vida com a moeda da dúvida?
     Comecemos distinguindo dúvida de pergunta. Abrigar-se na dúvida não é fazer perguntas. Pergunta tem resposta. Dúvida, não. Abrigar-se na dúvida é experimentar a fragilidade dos saberes, suportando-a. Os saberes são frágeis mesmos. São incompletos, são fluídos.
            O que eu posso fazer diante do outro, dos outros, das coisas externas a mim?
            Vou buscar essa resposta na música “O que será (À flor da pele)” de Chico Buarque: “O que não tem medida, nem nunca terá. O que não tem remédio, nem nunca terá. O que não tem receita”.
            Vou buscar em Alessandro Baricco, em sua obra “Los Bárbaros – Ensayo Sobre La Mutacion”, (2008, Editorial Anagrama), onde numa bela passagem encontro: “me gustaría examinar la mutación (...) aunque sea desde lejos, dibujarla” . . Vou considerar como uma “mutação” o que eu posso ver diante dos meus olhos, o que diz respeito ao outro, aos outros, as coisas externas. Mutação no sentido de que difere de mim, escapa à minha compreensão, escapa à minha apreensão, e há algo que eu posso fazer com isso: desenhar. Posso, como Baricco propõe, tentar ver no reflexo dos olhos do outro a água com a qual esses olhos sonham.
            Ao invés de um altar eu terei diante de mim outras águas que não as minhas. E, outras águas são convites abertos a viagens não conhecidas ainda.
            Tal como a água brota da terra, o movimento brota da dúvida, umedece a dúvida, aparece inevitavelmente, contamina, se mescla.
            Diante da surpresa eu ouvirei a música. E a música é um convite a movimentos.

Elisabeth Almeida

                                 (Texto elaborado a partir do encontro dos dias 2 e 9 de agosto de 2011, com a colaboração de Ana Paula G. Garcia)

5 comentários:

  1. O texto me fez pensar:
    Na força imaginária que sustenta a vida na certeza. Os conflitos árabes nos colocam frente esta experiência. Nos últimos dias temos a queda do império de kadafi, os conflitos em Tripoli e em todo território da Líbia. Com a queda da certeza resta a um povo reconstruir sua história na dúvida. O que virá agora? Podemos simplificar as lutas internas deste povo em dois tempos. Primeiro destronar o império de anos. Segundo mergulhar em águas profundas da dúvida. Alguns vêem perigo no mergulho. Eu vejo a liberdade e a beleza dos possíveis corais a serem encontrados.
    Pensei também nas relações amorosas. Sair da posição de vítima, abandonando o algoz para ficar no vazio. Depois da queda das posições determinadas: este maltrata, aquele sofre. Posições de certezas justificadas, o que farei, depois? Pergunta não dúvida. Enquanto gerações perguntavam, na busca da resposta, não houve movimento. Que será da população da Líbia fora da ditadura de Kadafi? O que será do sujeito que abandona a posição de vítima da violência? Talvez não encontre corais ao mergulhar os mares desconhecidos e profundos. Terá de inventar, construir corais nas profundezas com os restos da história que ficou na superfície. Penso que os restos de sentido, os restos de uma história seja um de povo ou de um sujeito são argilas suficientes para inventar uma nova história. Gerusa.

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  2. Rebelar-se contra a certeza que nos cega...Não se contentar com o que está posto, ainda que tenha sido posto por nós mesmos. Despir-se de tudo e de si para....
    Eliane

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  3. "Eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes..." (Raul Seixas)
    O mundo é movimento. Estar em movimento é estar em harmonia com o universo. É a regra. Fique parado e seu corpo atrofia, desenvolve escaras, infecção generalizada e morte...Se a mente para, vem o mal de alzheimer e você também morre. Então, mover-se é viver, parar é morrer. (Perdoe-me pelo silogismo prático e pouco refletido)
    Mas, contudo, não se pode confundir movimento com inconsistência. O universo, apesar de viver no movimento, não é feito de inconsistências, e, apesar de parecer paradoxal, convive muito bem com a lógica. É. O universo é lógico, conquanto incompreensível, ainda inacessível e inapreensível pela nossa inteligência humana.
    Saindo disso, eu perguntaria: você já experimentou o vôo livre? Já imaginou plainar sentindo o vento no seu rosto? É maravilhoso... Mas não dá para regozijar-se desta experiência sem usar os equipamentos próprios. Lance-se ao vento sem nada e você se esborrachará no chão, ou seja, nada do vento soprando no rosto. É a lei da gravidade.
    Verdades, certezas, aparatos, seja o que for, são simbólicos mesmo, mas na vida é preciso negociar sempre com eles. Abdicar completamente, inovar sem considerar o que já existe, é absolutamente inviável. No mundo nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. É outra regra, eu sei. Dá pra ser diferente? Só sendo Deus. E, por favor, não seja preconceituoso... É como penso.
    Eliane.

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  4. Diante do vazio de nossa existência, resta a criação. Ótimo texto, muito bem construído, afinal são essas duas possibilidades de estar na vida!

    Janilton Gabriel de Souza

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  5. Achei um texto muito profundo na "análise" na incerteza da nossa vida e da dúvida que acaba servindo como carga motriz e que impulsiona mesmo que inconscientemente a seguir-se a algum caminho e por alguma direção, nomeando ou não, é algo cotidiano a nossa vida...

    Guilherme Borges

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