terça-feira, 14 de junho de 2011

A entrega de si na escolha

Retomando neste texto alguns pontos que trabalhamos sobre a escolha, tentaremos agora colocar algumas questões.
          Ao considerarmos um determinado jeito de escolher, que se situa na precipitação do fim de algo (ou do nosso fim), num exercício de antecipação do que está por vir, ou de desistência justificada no porvir, encontramos aí uma escolha sob a forma de uma resposta banal, que não passa de uma tentativa de ficar livre da angústia, de ser esperto, cauteloso.
Vivos e suscetíveis aos acontecimentos, nos cabe fazer escolhas. Mais que nos cabe, isso nos é imposto. Necessitamos fazê-las. O quê caracteriza que num dado momento eu tenho que escolher? Existe alguma experiência interna que pede que uma escolha seja feita? A angústia experimentada frente a uma determinada situação seria esse sinal? Qual a relação da angústia com a “hora de escolher”? Como distinguir a escolha de uma atuação – sendo atuação aqui usada no sentido de uma ação feita não por desejo, mas como se fosse uma resposta desesperada, que não lida com o acontecimento e sim, que procura eliminá-lo?
Podemos fazer aqui uma primeira aproximação da escolha com a “lida” com uma situação – contrapondo-se à “eliminação” de uma situação que me traz angústia. Então, num primeiro momento, escolha é lida. Se é lida, ela necessita do elemento criativo, inventivo, necessita do “saber fazer na hora” – que não se encaixa no fazer uso de coisas anteriormente aprendidas, no “seguir receita”. Tentando avançar um pouco mais, o que caracteriza o momento em que eu tenho que escolher é o momento do impasse, é o momento onde algo inesperado se apresenta, onde o desconforto se instaura, onde o mal entendido mostra a cara, onde mal estar se coloca, onde “a coisa pega”, onde o pensamento não funciona.
Se partimos de uma constatação que em nossas escolhas há um aspecto que inclui a existência do outro, na hora da escolha duas coisas podem ocorrer: ou eu escolho porque, em meu pensamento, eu tenho a certeza delirante  de que “eu sei” do outro, “eu percebo” o outro, e, com base nisso, eu respondo à situação (excluindo qualquer possibilidade de colocar nessa resposta o meu desejo, excluindo a possibilidade de responder a partir do corpo), ou eu fico lendo meus pensamentos (agora os meus, não os do outro) e fico na dúvida se estou delirando ou se estou percebendo. Na certeza delirante a escolha é feita com base num “saber sobre o outro” – certeza essa que é impossível de se ter, a não ser, de maneira delirante. Na dúvida instaurada pela checagem do próprio pensamento, que insistentemente busca ter certeza de algo, dificilmente se escolhe. Geralmente, fica-se perguntando, infinitamente.
Muitas vezes, usa-se do subterfúgio da espera de que algo externo configure uma saída. Fica-se então num mal estar, num estar-mal na vida.
A partir da leitura que fizemos do filme “Homens e Deuses” pudemos dizer que “escolher é continuar”, simplesmente. Continuar no jogo. Qual jogo? Aquele supostamente entendido como jogo do outro? Já vimos que este é delirante. Aquele supostamente entendido como esperteza minha? Já vimos que este leva a um impasse.
Houve um momento em que consideramos o jogo que seria o do barco que não avalia a “conveniência” de manter ou não as velas içadas para continuar navegando e simplesmente as mantêm içadas e continua navegando. Fora do “eu sinto que” ou do “o outro está me avisando que”, o que seria essa água, esse mar, no qual o barco mantém as velas içadas? Esse mar que se sobrepõe? Há então na escolha algo que se sobrepõe, que “determina” as velas içadas. Esse mar seria o desejo? O desejo contraposto a qualquer “consideração” racional – do tipo contabilidade de perdas e ganhos, precipitação para evitar a angústia, não junção dos pontos que indicariam um possível desenho – e, ainda mais, sem possibilidade de partilha ou de parceria.
Consideramos que escolher é admitir a morte é continuar, porque se a admite. Como entender essa “morte”? O que seria, em vida, a admissão da morte? O que seria o reconhecimento dela e a permissão dela – permissão no sentido de não recusá-la, não negá-la?
Consideramos que o preço imposto pela recusa dessas escolhas é impagável, sabemos que determinadas escolhas pedem, exigem a entrega,... e que essas escolhas são “amparadas” no desejo, e que este, por si, não “ampara” coisa alguma. Ao contrário, destroça,... sabemos o quê.
Caetano Veloso, na música “Uns”, propõe:
Uns dizem fim
Uns dizem sim
E outros não há
            O que é dizer “fim”? O que é dizer “sim”?
“Sim”, ficamos, foi a escolha dos monges no filme. Baseada no desejo? Tudo indica que sim. Apesar do absurdo, apesar do “fora da linha”.
Como seria dizer “fim”? Houve um monge que não continuou. Houve um que disse “fim” para aquela missão. Baseada no desejo? Tudo indica que sim.
Apesar da diferença do “sim” e do “fim”, desejar e escolher não estão fixados em uma regra de permanência.
Uma escolha é um ato de criação frente a algo que se apresenta. Um ato que se sobrepõe. Entregar de si, ao invés de aniquilar-se. Inventar, criar, ao invés de ficar na dificuldade. Viver, ao invés de tecer esforços de morte ou tecer a própria morte.

(texto elaborado a partir do encontro do dia 17 e 31 de maio de 2011,
com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

Um comentário:

  1. Beth, fico pensando se o momento da escolha não se dá no limite da possibilidade de se suportar não escolher. Quando no grupo de terça vc diz sobre os conceitos de impotência e impossibilidade, ficou ecoando pra mim q escolhemos na impossibilidade de continuar....

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