segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Flash 4: Os bárbaros


Imagine uma criança ou um adolescente. Ou mesmo um adulto, vale para ele também. Imagine que você olha para o corpo dele e no lugar do braço você vê uma asinha ou coisa parecida. Com certeza sua primeira reação será de surpresa, de estranhamento. Você pode fechar os olhos para não ver, pode ficar preocupadíssimo com o que vê, pode ficar curioso e querer saber do quê se trata.
Fechar os olhos não vai fazer com que o já conhecido “bracinho” volte a se apresentar. Ficar preocupadíssimo pode levar você a pegar esse outro que apresenta essa “mutação” e levá-lo, por exemplo, ao médico – quem sabe ele pode operar, remendar, fazer de novo – ou mesmo levá-lo para algum outro tipo de conserto ou de isolamento.
Ficar curioso pode abrir portas muito novas para você e especialmente para esse ser que você olha e vê como diferente de você.
Esse é o ponto de partida escolhido por um autor italiano, Alessandro Baricco, e apresentado no seu livro: “Os bárbaros – Ensaio sobre a Mutação”.
No livro, Baricco nos traz uma idéia muito simples que pode nos permitir pensar questões muito difíceis, entre as quais: como lidar com quem é diferente da gente? Como lidar com a criança que não é como a gente se lembra de ter sido? Como lidar com o adolescente estranho? Como lidar com o outro que não se encaixa na minha “compreensão” de como “o outro deve ser”?”
Baricco se propõe a um exercício de compreender em quê consiste a mutação que ele vê ao seu redor. Constata que aqueles que são percebidos como “diferentes” são chamados de “bárbaros” e que deles se diz: “os bárbaros estão chegando”.
Sim, os bárbaros estão chegando. Eles não se adaptam mais à escola, não prestam atenção nas aulas, ficam o dia todo no computador, jogam jogos que parecem ser um convite a sair atirando nos colegas ou nas pessoas desconhecidas. Eles escolhem um curso, quando chegada a hora do vestibular, e o fazem sem interesse, mudam de rota no meio do caminho ou desistem, simplesmente. Eles vão para a balada e beijam na boca várias pessoas diferentes num curto espaço de tempo.
O que foi feito da escola, dos professores, dos livros, do dinheiro dos pais, dos amores?
O que esses bárbaros estão aprontando com tudo aquilo que nós reverenciávamos como os valores mais sagrados? Como as certezas mais sólidas?  
Sabemos que quando ouvimos, lemos ou pensamos que “os bárbaros estão chegando”, nos colocamos numa posição defensiva e assustada.
Delicadamente este autor nos convoca a olhar esses mutantes. Olhar com olhos curiosos, despidos de horror, despidos de desânimo, despidos de pouco caso. O horror nos faz desprezá-los, como se fossem algo à parte, algo que nos ameaça, que coloca em cheque nossa maneira de compreender a vida. O desânimo nos faz olhá-los como se fossem um nada, como se a novidade deles não valesse nada.
Mais problemático que o “bárbaro”, mais sério, mais irresponsável, são meus olhos vestidos de horror, de desânimo e de pouco caso sobre eles.
O que Baricco propõe é um exercício de amor. Propõe que eu olhe nos olhos desses bárbaros e tente ver neles o reflexo das águas onde ele habita ou dos ares onde ele voa. Propõe que eu me permita entrar nessas águas como quem experimenta algo muito novo e muito diferente pela primeira vez, que eu me permita compartilhar outros ares como quem aprende a respirar de outra maneira.
Esses a quem chamamos de “bárbaros” são uma nova espécie que morre onde nós achamos que sabemos viver e que vive onde nós achamos que é o fim de tudo.

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