terça-feira, 29 de março de 2011

De um grande Deus aos pequenos deuses, chegando ao deus-eu

No exercício de uma construção nos perguntamos pela diferença entre “um outro que sou eu” e “um outro que marca um além de mim” – esse sendo como uma dádiva que se oferece ao meu olhar e que se contrapõe ao que é tal como Narciso e portanto gera uma fascinação mortífera, em Narciso  representada no mergulho que ele faz em sua própria imagem. Nessa direção, a insistência de que há uma coisa nossa no que falamos do outro, não percebida por nós. Reside aí a chance de que podemos ter, de volta para nós, algo nosso.
Essa coisa que é nossa e não é percebida por nós, contida nas palavras ditas sobre o outro, não é a nossa “essência”. Não é tão simples assim. Não é ao que eu “sou” que eu chego se as escuto. Chego, porém, na maneira como me “amarrei” simbolicamente – na maneira como eu construí um lugar para mim no mundo. Encontro-me com o que posso chamar de “minha posição na vida”.
Mais uma vez essa distinção entre o “eu sou” e “essa é a minha posição na vida”.
“Eu sou” é a expressão de que há um sentido que me explicite, explique, determine, e, em última instância, me conforte e me fixe. É especialmente o meu Google – lugar de onde eu retiro as respostas que a vida exige de mim. Se “eu sei quem eu sou”, quando me confrontam, eu respondo com isso que eu sou.
“Sou filho de Deus, nascido nesse vale de lágrimas e destinado a sofrer e a me purificar para alcançar o Reino dos Céus”; “Nada acontece por acaso, há um plano maior por detrás disso tudo que eu vivo e, como não me é dado entender destes mistérios, eu os aceito humildemente”; “Estou me aperfeiçoando para voltar e ter uma vida melhor”; “Estou pagando por atos que fiz numa vida passada”; “São meus traumas infantis que atuam em mim”; “A maneira como fui criado, o desamor da minha mãe (ou do meu pai)...”; “A violência de meu pai,...”; “O amor excessivo da minha mãe,...”;... Tudo no mesmo balaio: desde explicações que remetem as provações divinas, até as que atribuem aos deuses menores (no caso, pais e mães) a culpa pelo meu sofrimento. Há em todas as explicações o esforço de justificar, a partir de uma causa externa, o meu sofrimento – por que eu vivo o que eu vivo. Justifico e pronto: posso sofrer à vontade!
          Há um outro que me precede, me marca, me determina. Quando tenho que responder a algo, respondo: “é por causa dele que...” ou “é por causa disso que...”. 
          Cansado de desfiar o rosário contra a frieza de Deus ou a maldade de meus pais, posso passar para a via oposta: a de que eu sou o culpado pelas coisas que me ocorrem. Daí surge: “Sou um pobre coitado, um nada frente à grandeza do universo”; “Estou à mercê de forças maiores e incompreensíveis”; “Sou uma vítima do destino, uma vítima dos acontecimentos de minha infância”; “Meu inconsciente é terrível, sou marcado para sempre pelo desamor e pela violência que um dia sofri”; “Não tenho auto-estima, não gosto mesmo de mim, sou um nada, não presto”. Pode surgir também: “Sou especial, predestinado a ser testado pela vida, tenho uma missão maior a cumprir”. Pronto, este é o “desfile” das auto-acusações, frutos de uma primeira inversão.

          Do outro, responsável pela minha desgraça ou pela minha felicidade, passo a colocar em mim mesmo a culpa, tanto pela desgraça, quanto pela felicidade.  Chamo isso de uma primeira inversão porque faz a passagem de “uma fala sobre o outro”, para “uma fala sobre mim mesmo”.
O deslocamento “do outro”, “para mim”, tem uma importância, mas é necessário saber que não dá para parar aí.
Se fico no movimento de passagem de um grande Deus externo, com variações que incluem outros pequenos deuses (pais, infância, inconsciente, traumas), para um “eu sou”, curiosamente, recrio um outro grande deus: o deus-eu. Este vai se revelar tão paralisante quanto o inicial, e, em última instância, vai fixar a posição de culpado.
Com certeza esse é um passo grande. Ele permite um acesso à maneira como eu dei um sentido a mim, agora já não mais através de um outro externo, mas através de um outro que sou eu mesmo.   
Então vejamos o que se dá aí. Vejamos o que quer dizer essa chance de olhar para a maneira como me “amarrei simbolicamente na vida”, de olhar para como construí esse outro grande deus: meu “eu”.
Eu posso passar a vida prestando homenagens a esse deus que me desloca da posição de vítima do outro, para a posição de vítima de mim mesmo. Fixado aí, vou responder a todos os confrontos, a todos os acontecimentos, como vítima.
Tínhamos deixado em aberto a questão da culpa sentida e relatada, tanto pelo agressor, quanto pela vítima. Menos difícil de ser pensada, a culpa do agressor é quase explícita: “Eu destruí, eu feri, eu fiz algo contra o outro”. A culpa da vítima parece uma redundância. Culpa de quê?  De colocar-se nessa posição. De voltar-se contra si desta forma. De portar, em si, uma explicação besta para colocar-se assim: “Sou vítima de algo que me ocorreu, portanto, só sei inscrever isso e o farei eternamente”.
 Tanto uma posição, quanto a outra, são posições calcadas em um sentido que foi dado ao outro ou a si mesmo. São calcadas em uma interpretação, em uma explicação, em uma acusação ou uma auto-acusação, frente a um acontecimento.
Esse acontecimento, geralmente, é um acontecimento de descompletude, de perda, de constatação de que algo não se deu conforme eu esperava do outro, conforme eu sonhei do outro, conforme eu queria do outro. Ou então, o acontecimento se deu porque eu não estive à altura do que eu esperava, sonhava ou queria de mim.
Acontece de Deus nunca estar onde eu o procuro; acontece de meus pais, ou alguém querido por mim, não darem conta do que eu quero; acontece de eu nunca estar totalmente à altura do que eu idealizo; acontece que o acontecimento vai me atravessar sempre, vai bater na minha porta, na minha cara, sendo sempre meu parceiro na vida. O acontecimento. Sem sentido, ele simplesmente acontece. Acontece porque eu não vivo com uma rede de proteção sob meus pés. E não vivo porque essa rede não existe. Toda a dificuldade reside nisso.
Um portão aberto, um cachorro corre para fora, uma criança corre atrás e, atravessando a rua, é atropelada. Em todas as circunstancias, por mais cuidadosos que sejamos, sempre vai haver um portão aberto, nem que seja pelo vento. Sempre vai haver algo que me escapa e que muda o rumo daquilo que eu tracei.
Culpar Deus, culpar os outros e culpar-se são tentativas de dar sentido a esses acontecimentos. A culpa é decorrente do sentido. Fora do sentido não há culpa.
Deixemos em aberto a questão da responsabilidade.

                                                     (a partir da reunião do dia 15 de março de 2011, com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).  

2 comentários:

  1. Beth:a beleza que vejo nesse seu trabalho é a metamorfose que se dá em mim a cada terca-feira.
    Caminhos novos e estimulantes me convidam a desbravar novas idéias.
    Diferentes pensamentos passam por mim e sopram os antigos,tirando suas consistências.Um mosaico se monta de uma poesia ímpar, porque neles se mesclam velhos e novos conceitos que vão se construindo sem compromisso ou pretencão.
    Aplicando tudo isso no meu dia a dia,permito passos adiante contemplando a beleza do caminho.
    Bj,
    Lívia

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  2. Obrigado pelo fechar e abrir de novas portas.

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