terça-feira, 1 de novembro de 2011

Eu te ofereço meu sofrimento

          
       Três experiências humanas são da ordem da mais absoluta solidão: nascer, desejar e morrer. É curioso constatar que todas elas, de uma certa maneira, incluem o outro. Vejamos cada uma delas.
         Nascer.  Ninguém nasce em meu lugar – ninguém pode nascer por mim. Eu posso estar exposta a uma série de cuidados, por parte de terceiros, ou não. De qualquer forma, minha mãe participa desse momento. Mas a participação dela não anula o fato de que quem nasce sou eu. 
Morrer. Ninguém morre em meu lugar – ninguém pode morrer por mim – embora possa acontecer de isso se dar, ou não, com a participação, presença ou auxílio de um terceiro. Mas quem morre sou eu.
Desejar. Ninguém deseja em meu lugar – ninguém pode desejar por mim – embora meu desejo seja tecido com os fios daqueles que desejaram e desejam algo para mim, que esperaram algo de mim, que foram os primeiros que me reconheceram e que eu reconheci como referências para construir uma identidade, uma história.
Gostaria de apresentar essa tríade como o “nascer” sendo o marco zero, o ponto de chegada, o “morrer” sendo o marco final, o ponto de término, e, nesse intervalo, o “desejar” sendo o tempo da vida que porta uma experiência.
          Se desejar traz em si a mesma condição da vida e da morte – que é a solidão, a intransferibilidade, o impossível de ser delegado ao outro – proponho pensar o desejo como algo que mantém a mesma condição do nascimento e da morte: me pertence. Proponho pensá-lo como tão estranho quanto nascer e morrer. Mais ainda: como aquilo que, em vida, mantém a mesma especificidade da experiência de começar e de terminar. Inexplicáveis para mim são: nasci, vou morrer, desejo.
        
Nasça por mim – pedido que não fizemos, talvez por não estarmos aptos a formulá-lo. Portanto, nos coube nascer por conta própria.
Morra por mim – tantas maneiras temos de pedir isso! E elas vão desde um medo terrível da morte e do processo de morrer, até o pedido feito em vida de que o outro morra, quando, na verdade, é algo em nós que precisa ou pede para morrer. Mas de qualquer forma, quando eu morrer, serei eu que morrerei e ninguém poderá fazê-lo por mim.
Pedimos: deseje por mim. Não é tão simples isso. Não é, necessariamente, algo que se possa dizer: “olha, você deseja e eu cumpro” – embora isso possa se dar, temporariamente.
         Deseje por mim é o mesmo que pedir “morra em meu lugar. Poupe-me desta experiência insuportável”. Pedido impossível.
Talvez o desejo, que pode ser expresso de várias maneiras, possa também ser expresso assim: ele é aquilo que me lembra que, no intervalo entre o meu começo e o meu término há algo que, permanentemente, me acompanha e reside no âmago da minha solidão.
Da mesma maneira que não há como pedir a alguém que morra no meu lugar – poupando-me da experiência da minha morte de uma forma definitiva – não há como pedir que alguém deseje em meu lugar.
Tentarei esclarecer o que entendo por “deseje em meu lugar”. Creio que posso expressar assim: “compreenda o meu desejo, pelo amor de Deus! Entenda-me”.
Que eu entenda a solidão do meu desejo, a impossibilidade dele ser entendido pelo outro, a impossibilidade dele ser compartilhado com o outro, é fundamental para que eu possa pensar as questões da culpa.
         Se você me diz “eu te entendo” isso significa: “eu te perdôo”; “eu te perdôo por desejar”; “eu te perdôo por trazer em si essa coisa obscura, solta, que se desloca, que escapa – essa coisa desconhecida e não entendida, inclusive por você”.
         Justamente pelo fato do meu desejo ser obscuro, fugaz, desconhecido, estranho a mim mesma, eu necessite tanto, peça tanto, ao outro – especialmente no amor – que me entenda, me perdoe. Justamente porque eu, que porto isso, não entendo, eu me sinto em falta, me sinto culpada, peço perdão. Peço o teu perdão ao pedir que você me entenda.
         Como você não consegue me entender – não porque você não tente, mas sim porque isso não é possível – eu me sinto culpada. Culpada, eu te ofereço o meu sofrimento. Meu sofrimento visa a tua culpa.  Culpada, eu peço o seu sacrifício, o seu sofrimento para fazer par com o meu. Culpado, você me oferece em troca, seu sofrimento. E chamamos a isso “amor”.
Nesse movimento evidenciamos a culpa como: obscura, inexplicável, insuportável.
         No momento do encontro – no momento onde o meu desejo coincide com o teu – no lugar do sorriso, eu te ofereço a dor de cabeça. No lugar do olhar sedutor, você me oferece os olhos embaçados. No lugar do convite, ambos oferecem a preguiça – o cansaço.
         Como sair da oferenda da culpa no amor?
         As perguntas que havíamos deixado abertas no texto “Passagens” eram:
         Como amar sem excluir, sem judiar, sem confrontar, sem se alienar no outro?
         Como amar sem sofrer e sem produzir sofrimento?
         Agora, chegamos à proposta de pensar a culpa como estando na origem do sofrimento imposto a si ou ao outro. 
         Nesse caso, a culpa seria a carta do “jogo do amor” que determina que o sofrimento será a música, a oferta, o fruto colhido em cada encontro.
         Que possamos responder na seqüência:   
         Qual a relação entre os primeiros amores – nos quais nos alienamos – e as dificuldades amorosas nos amores posteriores?
         Qual o lugar da culpa no movimento de substituição dos primeiros e fundamentais amores pelos amores outros?
         Qual a relação entre amor e desejo?


(texto elaborado a partir dos encontros dos dias 13, 20 de setembro e 04 , 11 de outubro de 2011, com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

2 comentários:

  1. Antes de dizer desta relação entre amor e desejo, pergunto: o que é o amor afinal? Se o amor vai na direção do outro e o desejo é experiência solitária e pessoal, como compatibilizá-los? O meu desejo, então, é dar ao outro algo...este algo é amor, mas do que é feito este algo?
    Eliane;

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  2. O que me intriga é como nos posicionamos em relação aos nossos desejos. Do nascimento e da morte dizemos: "aconteceu e acontecerá". Mas o desejo,... fazemos ele acontecer. O desejo se cria,... e, sim, essa criação é solitária. Desejo não nasce pronto e não morre quando quer. Estou muito interessanda nesse percurso de nascimento de um desejo.

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