terça-feira, 3 de maio de 2011

Escolhas

Se a morte é certa, se ela se apresenta sob a veste da transitoriedade, tanto da nossa vida, quanto de tudo mais, o que podemos fazer diante dela?
Uma resposta possível, gerada pela imensa angústia que isso nos produz, seria a de precipitarmos o fim, seja ele o nosso, seja ele o de qualquer outra coisa que se apresente em nossas vidas.
Fazendo assim, estamos escolhendo antecipar o que seguramente está por vir, mesmo que seja um vir por conta de nossa própria morte. Estamos respondendo de uma maneira banal – banal no sentido de que esta resposta não passa de uma antecipação de algo, não passa de uma tentativa de ficar livre da angústia, de uma tentativa de, imaginariamente, ser esperto e cauteloso. Tomados pelo medo podemos escolher a desistência justificada no porvir.  Antes que a morte chegue, nós abandonamos a vida. Antes que algo se rompa, nós desatamos os fios. Indo um pouco mais longe, melhor seria não ter nascido.
Acontece que nascemos. Acontece que estamos vivos e suscetíveis aos acontecimentos , sem garantia de nada. Nos cabe fazer escolhas e geralmente em nossas escolhas há um aspecto que inclui a existência do outro.
Existe o outro. Delírio ou realidade? Sou eu quem me sinto ameaçado ou é ele quem me ameaça? Interpretação minha ou percepção adequada? Essas perguntas, quando incluídas num momento de escolha, impedem a escolha.
Decido isso por causa do que eu percebo do outro ou porque eu não sei mesmo viver sem certezas? Impressionante o quanto essa pergunta é estéril, o quanto ela não oferece escolha. Ao invés, ela cria um impasse, um mal estar. Ela pressupõe que eu faça uma contabilidade, uma previsão de ganhos e perdas. E supostamente, que eu fique na posição onde a coluna dos ganhos se apresenta como mais sensata, ou a das perdas, menores. Acontece que na pressuposição fica-se com a sensação – real – de que não ocorreu ainda a perda. E isso é atroz, isso nos deixa como um barco que, ao sabor das ondas, abaixa as velas, desiste do norte sonhado, se entrega porque sentiu o vento mais forte, a maré mais oscilante. E sem a certeza de que prosseguindo, conseguiria, ou prosseguindo, seria tragado pelas águas. Escolher não é avaliar a conveniência de manter ou não as velas içadas. Escolher é continuar, simplesmente. Escolher não é roubar nem querer ganhar no jogo, nem desistir dele, escolher é continuar no jogo. Escolher está fora do “eu sinto que” e fora do “o outro está me avisando que”. “Eu sinto que” geralmente é uma armadilha. Dela, é bom que desconfiemos logo. Até porque ela sempre vem acompanhada de um “será mesmo?”. “O outro está me avisando que,...” é outra armadilha. Também é bom desconfiar. Também vem acompanhada de um “será mesmo?”.
A escolha pode ser pensada como um contraponto à precipitação do fim. De que ordem seria isso? Suportando as possibilidades em aberto, tanto as dolorosas quanto as prazerosas, saindo da contabilidade das perdas e ganhos, imaginemos uma escolha que, de alguma maneira, nos determina.
Sem dúvida, também tem algo atroz nessa “escolha”. Ela se dá além da gente, fora da gente, porque se dá fora do “eu”. A partir do “eu”, é precipitação por causa da expectativa ou da contabilidade. A escolha que se dá fora do “eu” porta a estranheza porque não é decorrente de, porque se sobrepõe, se impõe, ela “é”, tal como a morte.
Podemos buscar alguns elementos para falar da escolha no filme “Homens e Deuses”, de Xavier Beauvois.  Este filme conta a história da vida de oito monges cistercienses que vivem e trabalham num país no norte da África. A partir de um dado momento a permanência deles no país se torna perigosa para eles. Coloca-se a questão de abandonar o projeto ou mantê-lo. Podemos destacar aqui aquilo que acima nomeamos como a existência do outro. Foi um outro que os avisou do perigo, um outro que os ameaçou, um outro que passou a fazer parte da equação que demanda uma escolha. Se eles levassem em conta os avisos, iriam embora, não por escolha, mas por medo da morte, e assim precipitariam uma outra espécie de morte: a do sonho que os mantinha ali. Morreriam neste abandonar. Morreriam de uma espécie de morte em vida.
De uma maneira belíssima, neste filme, a estranheza da escolha se mostra. Bela, absurda, contundente. O que eles fizeram foi contorná-la com belos cânticos, e isso não é pouco, isso de contornar a escolha com a beleza torna-a mais humana.
Por mais que a fé se apresente como um fator que poderia dar sentido à escolha deles, na escolha, não é de fé que se trata. Crer, em nada ajuda para amenizar o absurdo de uma escolha. Aliás, não há no que crer quando se escolhe. Se houvesse, seria uma aposta. Não há consolo na escolha. Não há esperança, nem ilusão. Ao contrário, é quando não se joga mais com nada disso, que se escolhe. Não há precipitação. Não há junção dos pontos que indicariam um desenho. Não há possibilidade de partilha, nem parceria. Por mais que eles estivessem juntos, cada um escolhia solitariamente.
Escolher é admitir a morte. E sim, continuar. Porque se a admite.

(texto elaborado a partir do encontro do dia 19 de abril de 2011,
com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

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