sábado, 12 de março de 2011

Olhos abertos

Preciso de roupas, rápido. Por isto busco o personagem de um conto meu antigo (Relato sob o outono), e suas vestes sem cor e a paisagem de madrugada, folhas secas e brisa persistente. Olho firme para a figura que criei e vejo que desenhá-la tenha sido talvez um alento de buscar um canto sem olhos, onde os movimentos são apenas os de qualquer moinho. Estar ali no conto, seria estar sozinho.
Até que ponto?
Minhas palavras não traçaram uma página orgulhosa de si mesma? Como se tivesse coberta por minuciosa maquiagem? Não são os olhos do leitor o combustível que mantém aceso aquele texto? Que pode crepitar como fogueira ou sumir como um frankenstein num lugar indizível e distante?
Mais. Ao dizer sobre o conto, nessa releitura, não ressuscito o morto com a colaboração do leitor que persiste até este ponto?
Então deságuo novamente na constatação de que a minha existência, não importa qual roupagem, personagem, maquiagem ou fantasia só se realiza com o olhar vizinho. Imagino algo semelhante a um caleidoscópio de olhos, retalho de muitas cores, difícil de suportar... mas único caminho. 
O olhar de Narciso é uma opaca queda infinita, horizontalmente limitada. O afogamento se dá pelo peso contido na caixa de concreto do “eu”, sem frestas, andando em círculos e construindo castelos monstros repletos de quinas e pontas afiadas.
Imagino, como vi brilhar no centro das reuniões de terça num portal que se abre lá em Varginha, que o olhar do outro me compartilha e engole. Que quando olho o outro me enxergo e admiro, precisamente por ver a potência de espectros que carrego.
Não quero me resumir a mim. E se passo a vida inteira como uma ostra, tecendo pedras tão sólidas e inquebrantáveis é porque carrego comigo a mania de andar em círculos e rebanho.
Mas vi! outros olhos me olhando e sai correndo para um canto com dez paredes e nenhuma janela. Fechei a porta, acendi a luz e lá fiquei tremendo as pernas, com olhos fechados, sozinho, fugindo. Apenas um assovio sorri que lembrasse a minha infância.
Foi quando me deu uma vontade louca de tirar toda a roupa, óculos e sapatos, quebrar os guarda-chuvas e sair correndo pelos pares de olhos que se abriam.
Foi o que fiz por instantes.  

         "O seu olhar melhora o meu" - Arnaldo Antunes

3 comentários:

  1. Johnny,... que olhos você tem para as coisas que te chegam! Sob o impacto do seu texto,vejo o quanto o seu olhar melhora o meu!

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  2. Johnny, o olho, os olhares... você me lança num caleidoscopio de espelhos quando coloca em palavras a força dessas coisas. Eu te agradeço. beijo, Beth

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  3. È precioso o olhar de quem vê o seu interior!
    Como é bonito poder dividir isto com o próximo.
    Nikinha

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