quinta-feira, 10 de março de 2011

Narciso conversa com Medéia, os dois têm ciúmes

Segundo encontro. Em nossa oficina de trabalho tem um objeto que remonta a tempos muito antigos: um tear. Diante dele, ao redor dele, nos colocamos como aprendizes ávidos e porque não dizer, fascinados. Os fios de hoje são preciosos: “O paradoxo do ator”, de Denis Diderot, e “Medéia”, de Eurípedes.
Trazemos as marcas do que foi tecido uma semana atrás, postado com o nome: “Tema do Projeto: As patologias do Amor”. Os efeitos produzidos em nós e as ressonâncias deles no grupo, que se reúne às quintas, geraram o texto que foi postado com o nome: “Não inventamos a galinha, nem o ovo”.
A questão aberta sobre “o que seria a nudez”, questão que estamos trabalhando como sendo algo da ordem de um esvaziamento narcísico, se vestida com as vestes do “eu sou” e/ou do “eu sei”, vira uma “não-nudez”, um “não-esvaziamento" - que, se pensado diante da existência da morte, perde totalmente a graça e a consistência. Somos finitos, destinados ao incompleto, ao impossível, somos órfãos de sentido, marcados pela certeza da morte.
Essa “nudez” nos dá a direção. Uma direção dura, sem ilusão. Porém, bela na sua vertente de liberdade, de leveza, de mutabilidade, de fluidez. Bela, nas possibilidades que abre por nos colocar como “massinha” – daquelas que as crianças brincam, modelando – e não como seres endurecidos, daqueles que gostam de dizer por aí: “pau que nasce torto, morre torto”. A “nudez” está para a “massinha”, tal como a “vestimenta narcísica”, as certezas fixas estão para o “pau que nasce torto, vai morrer torto” (por ter acreditado nisso).
Insistimos que as máscaras são necessárias, mas acreditar nelas é um perigo. Podemos fazer uso delas, sustentá-las quando preciso for e pendurá-las depois num cabide – para se estar leve e viver as outras coisas da vida.
Em meio ao trabalho com as máscaras, recebemos uma visita ilustre. Numa pequena pausa, Narciso vem até nós, claro, sem perder de vista sua imagem radiante espelhada na água, pouco antes de se atirar nela. Perplexos, e agradecidos pela linda visita, nos perguntamos se estamos todos ali alucinando. E nos damos conta de que sim, pois Narciso é uma ilusão. Para ele, o que existe além dele, é a própria imagem. Ele olha e, ao olhar, olha para a imagem dele. Para Narciso, no espelho do lago, o outro é ele mesmo, e aí, é mortífero.  E nos perguntamos: só pra ele?
Desde Freud sabemos que somos constituídos inicialmente num narcisismo primário. Podemos dizer de um narcisismo necessário à nossa constituição psíquica fundante.
Diferentemente dos animais, aparelhados pelo instinto que os conduz na vida, nós necessitamos criar uma identidade para nós, um aparato. O problema reside na fixação dessa identidade, na crença de que essa construção necessária seja uma verdade sobre nós.   
O narcisismo, construído a partir do que a gente vê, construção que fazemos de uma imagem para nós mesmos, passa pelo outro. Eu olho o outro para que eu possa fazer uma idéia, uma imagem de mim, para mim. Isso inclui também a leitura que faço sobre o outro, inclui o que eu penso que o outro seja.
Por outro lado, esse mesmo narcisismo nos dá trabalho pela vida afora. Dele, temos que suportar a quebra contínua, que distorce essa bela imagem de nós, essa completa imagem de nós. E ao fazer isso, avançamos na vida mais além que Narciso. Podemos nos afastar do lago, passear no bosque, encontrar outros, suportar nossa diferença, suportar a diferença do outro, sabendo que sim, algo nos une, pois somos semelhantes. E essa nossa semelhança porta, ao mesmo tempo, um problema e uma solução.  
Um problema porque, sendo o outro tão igual, fica difícil não olhar para ele “como se fosse eu” e querer, realmente, “que ele seja eu” em suas escolhas, em suas lidas. Esse é um problema que se multiplica porque, “se ele é eu”, então eu tenho muita raiva, muito ódio, porque ele me duplica – ele pode estar no lugar que eu gostaria que fosse meu. Voltaremos a isso logo.
Uma solução porque, dentro dessa “semelhança”, eu encontro todas as gradações, todas as possibilidades de me colocar na vida, como “possibilidades”, portanto, como “escolhas”. Também voltaremos a isso.
Damos um passo além e encontramos o suportar a si mesmo diante de seu semelhante. Suportar-se na sua singularidade, apesar da semelhança. Suportar o outro na singularidade dele, apesar também da semelhança.
Narciso, ignorando totalmente o outro como separado dele, e, ao mesmo tempo, semelhante, “baba” em si e espera que o outro o lustre, passe um paninho para deixá-lo mais bonito ainda. Que o outro limpe mais o espelho dele, para que sua imagem brilhe mais.
Posição aparentemente oposta à de Narciso seria a daquele que corre para o outro lado. Aparentemente, porque se isso ocorre, fica-se na mesma. Dizer “eu sou uma merda” é tão narcísico quanto dizer “eu sou o máximo”. Fora, que é mais complicado ainda de reconhecer o narcisismo aí, neste lugar de merda. Fica mais difícil reconhecer a “mentira” no “eu sou uma merda”, porque a pessoa se coloca numa posição tão supostamente fragilizada, que todos, até ela mesma, podem se compadecer de seu estado e mascarar, com isso, a força dessa construção – dessa posição na vida. Há que se ter força para se manter aí. Contrariamente ao que parece à primeira vista, isso exige força mesmo. A mesma força que exige a posição do “eu sou o máximo”.  
Voltando à semelhança como “solução”, o que podemos compreender é que a diferença do outro não passa de uma das possibilidades que também poderiam ser escolhidas por mim. Portanto, apresente-se o outro como genial ou como não valendo nada, o que ele mostra é uma das múltiplas possibilidades do ser humano de se inscrever no mundo. Possibilidades também me habitam. A única diferença está na escolha que ele faz e na escolha que eu faço. Não sou melhor ou pior que ele. Apenas me inscrevo no mundo de maneira diferente.
Se eu porto em mim as possibilidades que vão do belo à merda, eu posso escolher, posso ficar no belo ou na merda, posso escolher a gradação que quiser para minha vida. Seja qual for a escolha, tenho que sustentar. Se sustentar minha posição, ganho a possibilidade de suportar melhor a posição do outro.
Voltando agora à semelhança como “problema”, encontramos no outro, semelhante a nós, uma possibilidade para o surgimento da inveja e do ciúme. Pois uma das formas de estruturação do ciúme é a pessoa olhar o outro e supor que aquele outro tem aquilo que lhe falta. Que aquele outro é aquilo que ele não consegue ser. Pronto: está aberta a porta para o ciúme e para a inveja.
O ciúme e a inveja podem se apresentar também a partir do olhar da pessoa para o olhar de alguém, direcionado a um outro alguém. Se outra pessoa olha para alguém, eu vou ver esse olhar e supor  que a pessoa olhada tem algo que eu não tenho. 
O olhar do outro sobre um outro, que não sou eu, também explicita para mim que  existe algo para além de mim. E isso é mais uma quebra narcísica, é algo que é constatável: a existência de outro além de mim.
Numa tentativa de pensar o que poderia estar fora do ciúme e, portanto, fora do narcisismo, fomos remetidos à posição do amante. Na posição do amante o ciúme não tem lugar. O amante não está na posição narcísica. O amante ama. Ama o amor. Pode dar ou colocar esse amor onde quiser. É uma posição generosa. Ele dá o amor. O outro faz com esse amor o que quiser ou o que puder.
            Diferentemente da posição do amante, o amado ocupa uma posição extremamente delicada. Ele espera encontrar o outro amando-o. O outro pode até colocar amor nele e ele achar sempre que esse amor é insuficiente, ficando, eternamente, esperando pelo amor do outro.
Se uma análise vai na direção do esvaziamento narcísico, ela vai ao encontro de uma posição de amante.
Fora da fixidez do “eu sou”, eu posso estar em diversas gradações, me permitir não negar, me posicionar, pensar, falar, criar, desejar, gozar... e quem falou que é pecado tudo isso? Os invejosos. O invejoso fala: “eu sabia que isso ia acontecer”; “mais cedo ou mais tarde...”

Elisabeth Almeida
(Texto produzido a partir do encontro com o grupo de terça, no dia 15 de fevereiro de 2011, com a colaboração  de Ana Paula G. Garcia)

5 comentários:

  1. Oi Beth,
    > Não tivemos o encontro de terça-feira e senti falta...
    > Estava aqui pensando...Tivemos três (ou quatro) encontros e, logo no primeiro, foi proposta a leitura de Medéia e, embora todos nós tenhamos lido, até hoje ela não entrou, realmente, no centro de nenhuma das reuniões, mas apenas in passant, ou seja, alguma menção foi feita, alguém citou ou disse algo que tinha a ver com a história, lemos um trecho e só.
    > Já te ocorreu pensar porque ainda não nos detivemos realmente nela?
    > Penso que não quisemos enfrentá-la. Todos já sabemos a história e é exatamente por isso que custa trazê-la para o centro de pelo menos um de nossos encontros.
    > Nós a amamos, ou a odiamos?
    > Se a amamos, talvez seja porque ela fez tudo o que fez, deu vazão a todos os seus desejos (ou instintos) de forma intensa, despudoradamente. Talvez a odiemos igualmente pelo mesmo motivo, porque ela ter feito tudo o que fez se opõe a tudo o que somos e (não) fazemos. E isso incomoda...
    > Antes de bancarmos os liberais e dizermos não é nada disso, que apenas faltou tempo para discutir, que tal tentar procurar, em nós, o motivo da relutância (porque ela, ao meu ver, existe). Será que, apesar de tudo o que nos propomos nestes encontros (um esvaziamento de identidades, uma abertura para algo novo, que ainda não sabemos, mas queremos construir, etc.) um espírito pudico, recheado pela consciência do ?certo ou errado? não nos estaria assolando de tal forma a que, veladamente, rejeitemos e nos afastemos deste tema, mais especificamente de Medéia, tentando, como que numa combinação silenciosa entre os membros, relegá-la a escanteio, até que outro assunto tome o seu lugar?
    > Não vou mentir. Medéia me faz pensar. Ela é mulher. Então, ela está em mim, enquanto mãe, esposa e presença social. Como eu agiria no lugar dela? E você? E cada um dos que frequentam os encontros?
    > Tem sentido falar de alguém como ela, sem colocar o seu ali para se perguntar: e eu com isso?
    > Todas as questões envolvendo Medéia me fazem pensar, para além de sua extrema passionalidade, também na função materna.
    > Ela, em diversas passagens, diz: Ai de mim, ai de mim, e demonstra, em palavras e sentimentos, seu sofrimento por decidir matar os filhos, além, é claro, de matar a nova mulher do marido infiel.
    > Ao decidir não mais ser mãe daqueles filhos, matando a própria maternidade,não se insurgiu ela contra algo que seria próprio da natureza humana feminina, ou a maternidade é uma escolha, pura e simplesmente? (Diferentemente da função de esposa)
    > Você disse, com muita propriedade, que o registro psíquico de uma experiência não se vincula à sua significação (no caso de abuso sexual de criança, por exemplo, que ainda não teve noção do significado do gesto), pois o sentir prazer é inato, é do ser humano. É, portanto, amoral.
    > Pensei num outro exemplo. Imagine uma mulher hetero, de olhos vendados, que aguarda as carícias de um homem, mas, ao invés dele, entra uma outra mulher no quarto e lhe faz os mesmos carinhos. É bem provável que ela sinta prazer e chegue até o orgasmo se permanecer na ignorância. Mas, tire as vendas dos olhos e imagine qual será sua reação...
    > De fato, a conceituação das experiências passa longe do sentir...
    > Mas, voltando à questão maternidade, diga-me, além do prazer sexual, o que mais é inato ao ser humano? A maternidade rejeitada por Medéia não seria uma agressão a algo que é inato à mulher, daí a razão de seu sofrimento ao abandonar esta função?
    > Afinal, no reino dos mamíferos ? e nós somos ? não é comum a fêmea cuidar de seus filhotes?
    > Medéia me faz refletir sobre muitos outros aspectos. Detive-me neste porque me chamou a atenção e queria compartilhar com você.
    > Um grande abraço.
    > Eliane.
    >
    > P.S. Entrei no blog do minutal e está extraordinário.
    >
    >

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  2. Oi Eliane,

    Lemos juntos muito pouco, é verdade. Agora... quanto a Medéia não ter sido trabalhada... uau...eu penso que a gente pode abordar as coisas de diversas maneiras. Diretamente é uma delas, contornando-as é outra. Creio que a força de Medéia não está absolutamente nos fazendo recuar, ao contrário, está nos permitindo ir muito longe, (e não longe dela).

    No Minutal tem dois textos, "Medéia encontra Narciso, os dois têm ciúmes", e o outro, "Medéia-a quê venho" que são frutos da nossa apropriação da riqueza que Medéia proporciona em termos de beleza e de reflexão.

    Sabemos que sabemos a história. Sabemos que já foi explorada inúmeras vezes. Talvez, justamente por isso, estamos buscando maneiras de ouvir o que ela nos diz hoje, a nós, como se fosse a primeira vez. Gosto muito disso, de tê-la como inspiração.

    Medéia é forte e nos toca muito de perto. Não sei se precisamos olhar o sol diretamente com os olhos nus.

    Você escreve "que não nos detivemos realmente nela". Sim, diretamente não o fizemos. Mas como pensar que quando falamos e fizemos as construções sobre os ciúmes, sobre o narcisismo, sobre a agressividade, e muitas outras, não estamos falando de Medéia???

    Enfrentá-la diretamente, por quê? Podemos e estamos conversando com ela. Temos muito, muito ainda a conversar. Por quê restringí-la?
    Nunca te responderia que faltou tempo para discutí-la. Ao contrário, usamos o tempo com as ressonâncias dela.

    Nossas discussões não se dão "num espírito pudico, assolado pela consciência do certo e do errado". Evidência disso em nossa discussão sobre a sexualidade, o prazer inscrito no corpo antes da inserção nos dispositivos.

    Se amamos Medéia... se odiamos Medéia... não sei. Temos visto que o eixo amor-ódio é bastante complicado... Nosso esforço tem sido o de sair dele,e pensar além.

    Quanto às questões da maternidade acho que temos muito o que trabalhar ainda.

    E mais uma: você pergunta por uma mulher que, vendada, recebe carinhos sensuais de outra mulher sem saber. E pergunta pela reação dela ao tomar conhecimento. Bom, uma coisa é o que se experimenta no corpo, outra coisa é como se responde a partir do conhecimento...
    Obrigada pelas "provocações boas"!

    beijos, Beth

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  3. Oi, Beth e Eliane, fiquei pensando nos comentários de vcs. Embora não esteja acompanhando as reuniões (apenas leio os textos que são, de certa forma, extratos do que aconteceu), penso que a imagem de Medéia é uma cobaia, que nos permite com clareza ver como, embora sejamos completamente movidos pela moral, a moral é um componente imposto. Creio que o estudo da moral deve estar de mãos dados com uma ética/virtude que permita tirar o que é fruto de puro preconceito. Reler a moral que nos rege, talvez para isto seja tão necessário olhar nos olhos de Medéia ou de tantos ícones que se atreveram a sair do pequeno círculo que nos é dado como limite. Abraços.

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  4. Beth como você pode ter um olhar tão simples e profundo ao mesmo tempo...
    Dani.

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  5. Beth como pode você ter um olhar tão simples e profundo ao mesmo tempo.
    Dani...

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