quarta-feira, 23 de março de 2011

Do espelho de Narciso ao espelho dos olhos

Narciso, no espelho das águas, vê-se refletido. Fascinado pelo seu próprio rosto, fascinado por si mesmo, mergulha em sua própria imagem e morre.      
            Numa cena de “Mishima – Uma vida em quatro tempos” dois amantes estão deitados. Um deles pede ao outro que o descreva. Aquele que vai fazer a descrição pega um espelho, passa-o sobre o corpo do outro, porém, com a face espelhada voltada para si.  Olhando-se neste espelho vai descrevendo a si próprio. Responde ao pedido do outro (“descreva-me”) falando sobre si mesmo.
Temos aqui duas cenas. Na primeira, narciso olha para um “outro” que, embora se apresente sob a forma de um reflexo, é visto como um outro. Olhar para o próprio reflexo é olhar para um outro.  Não deixa de ser um outro e não deixa de ser ele mesmo – inteiramente o mesmo.  
Na segunda, a do filme, o que olha coloca entre eles um espelho, voltado para si mesmo, porém, embaixo desse espelho tem um outro que não é ele. O movimento de deslocar o espelho sobre este corpo que está embaixo do seu indica que aí se dá um jogo, “como se” estivesse lendo o outro. Entretanto, é a si mesmo que ele lê.
Esse espelho percorre o corpo do outro e é acompanhado de palavras que, supostamente, falariam do outro, mas não fazem. E isso não é um mero jogo de engano. Isso é da ordem da mais pura beleza da inclusão do outro e, ao mesmo tempo, é a expressão do impossível de falar do outro – interditado desde sempre para nós.
Embora Narciso e o amante do filme só consigam ver a si próprios, o amante do filme tem, de alguma maneira, o outro incluído na cena.
Por que incluir esse outro na cena se é a si mesmo que se vai ver? Qual a diferença entre ver-se sem o outro (como Narciso) e ver-se incluindo o outro?
            A partir de Narciso podemos dizer que ver-se sem o outro é mergulhar os olhos na própria imagem, sem a mediação de uma outra imagem, que teria a função de  arrebentar  um pouco  essa fascinação gerada por si próprio. Vemos que ela é algo que precipita Narciso para a morte. Ou seja, olhar para a própria imagem, sem um outro, é insuportável.
Por sua vez, o ver-se, incluindo o outro, também não exime que os olhos mergulhem na própria imagem. O que faz diferença aqui é que há a inclusão de algo além de si mesmo. E essa inclusão faz uma quebra nessa fascinação e permite, paradoxalmente, que se saia de si.
Os elementos que temos até agora nos permitem pensar a importância do outro como possibilidade de ruptura narcísica. Somente no reconhecimento da existência de algo além de mim é que eu fico minimizado, é que eu saio do horror de uma contemplação absoluta de mim mesmo.
Um passo a mais e vamos chegar “no impossível que é o outro para mim mesmo”. Impossível no sentido de que não há como acessá-lo, não há como falar dele. Falar do outro é falar de si. Nunca conseguimos falar de outra coisa que não seja de nós mesmos. Isso não quer dizer que ao falar do outro aquilo que dizemos é exatamente a expressão de nós. Não é bem isso. A questão é que há uma coisa nossa no que falamos do outro que não é percebida por nós.
Há um avanço nesta passagem do sair da contemplação absoluta de si e de necessitar do outro para poder fazer uma segunda saída, agora já pela palavra. Ao falar dele posso me dar conta que falo de mim. Não que fale a “verdade” sobre mim. Falo do lugar onde me coloco. Do ponto onde me situo na vida. E posso esclarecer para mim mesmo onde é que, mais do que ser, eu me ponho. E se me ponho assim desse jeito, ou de um outro jeito que seja, eu posso, posteriormente, escolher manter-me aí, ou não.  
Estamos na tentativa de avançar o trabalho realizado na terça-feira passada, no qual trabalhávamos o par “eu/outro”. Tínhamos o par “agressor/vítima” como eixo do nosso trabalho dentro das “Patologias do Amor”. Havíamos chegado ao ponto de pensar o lugar da vítima como uma conseqüência da junção de uma experiência vinda de um contato com o outro, com a significação dada, posteriormente, via dispositivos simbólicos. Significação que fixa um lugar para a vítima – um lugar, curiosamente, sempre acompanhado pela culpa e de uma recorrente má lida com a sexualidade. Nossa leitura incide sobre a vítima pelo fato de ser ela não capturada pelos dispositivos, na sua suposta posição passiva. Ela endereça a queixa, quando muito, e sua queixa é sobre o outro: o agressor. Suponhamos que ela fale sobre o agressor. Voltamos aqui à nossa construção. Sobre quem ela está falando? O que ela constitui ao constituir com palavras o agressor? Ela constitui a vítima. Então, se primeiro marcamos que a experiência, inicialmente da ordem do puro prazer corporal, no contato com a significação encontra o seu sentido “traumático”, nesse segundo tempo, ao “dizer” do agressor, quem o diz constitui-se como vítima. Primeiro temos o campo do simbólico que dá o sentido (no caso, “ter sofrido uma agressão”). Segundo temos o uso da palavra para a constituição da posição. Esclareço que o uso da palavra para  acusar pública ou intimamente o outro – ao descrever o outro, ao olhar o outro e falar dele – me constitui como   vitima.
            O olho do outro é o espelho.
Sabemos que é comum a pessoa se olhar no espelho e não se reconhecer. Sabemos que o espelho inverte, nos devolve a imagem invertida. Aqui está a chance, a beleza da inclusão do outro. Ter, a partir dele, de volta para mim, algo meu. Sim, ao avesso dele. No inverso dele, encontro-me com minha posição na vida. Insisto: não me encontro com o que “eu sou”, mas sim com o lugar onde me estabeleci. Tal como inicialmente meu encontro foi com uma significação da minha experiência – significação esta que não apreendia o que eu tinha experimentado no corpo, embora tivesse o efeito de amarrar, simbolicamente, o vivido no falar. Ao falar do outro eu falo de mim e essas palavras não apreendem o que eu “sou”, mas sim de que maneira eu me “amarrei” simbolicamente, de que maneira eu construí um lugar para mim. Sem o outro isso não é possível.
Estamos buscando no teatro estas relações. Falar de Medeia é falar de nós. Falar de nós é falar de Medeia, de Ricardo III, de Romeu e Julieta, de Otelo. Não é por acaso que estas peças perduram. Elas capturam algo que é inerente à experiência humana e o é por estarem inscritas nas variações do par “amor/ódio”, por capturarem algo que é nosso. Nós nos reconhecemos nelas e, mais do que isso, temos a chance de olhar nos olhos, nos espelhos destes outros olhos e encontrar algo nosso.
Estamos trabalhando com dualidades, com pares de opostos. Viemos de um par “eu/outro”, de um recorte para exemplificar “vítima/agressor” e tocamos agora no par “amor/ódio”.
Trabalhemos um pouco, agora, a questão pela vertente do agressor – aquele que a cultura percebeu como um perigo e criou dispositivos para conter. O agressor é sempre contra um outro. Parece claro, mas exige que nos lembremos que esse “outro” pode ser um fora de nós ou pode ser nós mesmos. Ou seja, inicialmente a agressividade se apresenta como se fosse contra alguém – no caso do agressor, “constituído enquanto tal”. Olhemos um pouco para ele. Lembremos que em Freud, em seu trabalho sobre o sadismo e o masoquismo, a agressividade voltada contra o outro é um desdobramento da agressividade inicialmente voltada contra si. Então, primeiro temos a auto-agressão e depois temos essa mesma força desviada para o outro. Ao desviá-la para o outro, constituímos o outro como agressor. Ao constituí-lo nos constituímos como vítimas. Ao constituí-lo podemos entender que não é por acaso que se diz que “um ladrão, na cadeia, vira um assassino”.
Em algumas parcerias “amorosas” onde a agressividade se apresenta, temos juntos o “agredido” – que, de alguma forma, “provoca” a agressão para provar, ao outro e a si mesmo, que a agressividade está no outro – e o “agressor” que “acredita” que sua agressividade está voltada contra o outro e não tem noção do quanto ela está em si. E mais, o agressor explica-se como sendo alguém que agride porque o outro pede. Bela armadilha! Com certeza, bem montada, bem tecida, tendo por base um engano. Talvez o engano seja o material mais apropriado para todas estas montagens.
Permanecemos com as questões da culpa experimentada tanto pelo agressor, que não é difícil de ser identificada, quanto pela vítima, que nos soa mais estranha, porém, são relatadas e ainda a relação desta culpa da vítima com a sexualidade. Prosseguiremos deste ponto.
Deixamos em aberto uma pergunta clínica: quando uma pessoa reconhece em si a agressividade que ela usa contra o outro, essa agressividade cessa? Seria esse o caminho para interromper a agressividade voltada contra o outro? E, evidentemente, a contra partida dessa pergunta: na direção do reconhecimento da agressividade contra si, isso se dando, ocorre o desenlace desse par, ocorre o não mais constituir-se como vítima e, portanto, desmancha-se o agressor? Resta: o que fazer com a agressividade agora percebida como parceira de si próprio? 

(a partir do encontro realizado terça-feira, dia 01 de março de 2011 –
com a colaboração de Ana Paula G. Garcia).

2 comentários:

  1. Querida Beth,

    Não dá para não comentar a reunião de ontem.
    Quanto mais participo das reuniões, mais me apaixono...
    Você foi muito feliz ao trazer aquele trecho de conversa do filme a respeito da dor. Mais que isso, suas colocações sobre o comportamento daqueles pais frente a dor foram de uma clareza que, embora não tenha ainda assistido ao filme, permitiu-se refletir o seguinte:
    Primeiro, não vou dizer da dor pela perda de um filho, porque esta dor é indizível. Quando um filho morre, a mãe e o pai morrem junto. Assistem a própria morte embora ainda vivos...Nunca mais serão os mesmos.
    Cissa Guimarães, indagada sobre como estava vivendo diante da morte do filho (morreu atropelado num túnel interditado, enquanto andava de skate), ela disse mais ou menos o seguinte: "Estou suportando, vou continuar a viver, mas meu riso nunca mais será o mesmo". Interessante que a risada, a gargalhada da Cissa Guimarães é a sua marca distintiva. Era uma das melhores gargalhadas que já vi, tanto que ela era conhecida por isso. Dizer que sua risada nunca mais será a mesma, não é, para mim, como se dissesse que não vai mais rir porque está triste. É dizer: "Aquela que vocês conheceram já não existe mais", ou seja, ela terá que se refazer, renascer mesmo, porque aquela Cissa já não habita mais este mundo.
    O desarvoramento dos pais do filme, que não conferiram sentido à morte do filho, e que ficaram agindo de maneira aparentemente ilógica é, como você mesma pontuou, um jeito de seguir em frente, continuar, apesar da dor e com a dor a reboque.
    Mas, o ponto-chave, se é que posso dizer desta forma, e que pude extrair da sua fala, é que, ao não dar sentido à dor, esta é posta e vivida como ela é, pura, porque qualquer tentativa de se qualificá-la é uma fuga, como é também o proceder de alguém que busca culpados ou responsável por aquele ato e se enraivesse, deslocando a dor para ver se, assim, dá para aliviar.
    Quando a mãe do filho morto procura o atropelador e tem com ele uma relação absolutamente diversa da que seria "esperada" para a situação, ela nada mais faz que desatrelar a dor de qualquer sentido, responsabilização, verdades ou consequências. A dor é uma coisa, tudo o que se faz a partir dela é outra totalmente diferente...Não tem relação, a menos que você se encarregue se dar sentido, de estabelecer uma relação entre ela e tudo o que a provocou. A relação de causa e efeito pode até existir, mas a dor é por si. Não importa o antes, o durante ou o depois. A dor é um algo só seu, a dimensão dela é sua e tudo o que está ao redor é só acessório, que você coloca junto ou não, usa ou não, na tentativa, vã, de minimizá-la. E quanto mais se tenta minimizá-la, mais ela insiste em se impor. Não se deve lutar contra ela. Faz parte da vida a dor, não para doer simplesmente. Na verdade, a dor abre uma perspectiva, porque muda uma situação. É um marco. Então, a pessoa dolorida terá que se mover, pena de se extinguir, dada a impossibiidadade de se fixar naquilo que já foi e cuja representatividade, agora, é esta mesma dor...
    Beth querida, quando você me respondeu aqueles questionamentos na terça-feira anterior, permitiu-me rir por dentro. Explico. Finalmente compreendi que não tenho que "queimar neurônios" para compreender isso ou aquilo ou para me posicionar diante disso ou aquilo que está sendo tratado nas reuniões. Não, não tem que fazer, tem que estar apenas...Este estar, para mim - e acredito que também para os demais - é que permite sempre vivenciar algo novo nestas reuniões. Você percebe? Não dá para entrar e sair delas sempre do mesmo jeito...
    É engraçado porque você não precisa entrar com nada - e é melhor que não haja nada mesmo - mas, com certeza, sairá com algo....
    Diria, por fim, parafraseando os evangélicos que dizem "A verdade vos libertará", o seguinte: "A não verdade é que vos libertará!"
    Um grande abraço.
    Eliane.

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  2. Querida Eliane, sempre bem vinda! obrigada, os pontos que você marca vão de encontro ao que talvez seja o mais precioso no momento de nosso trabalho. Podermos pensar que depois de um acontecimetno não somos mais os mesmos e que se tem uma coisa que não nos libertará seguramente essa coisa é a verdade!
    beijos, Beth

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