terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os bárbaros, aqui estão

Primeiro encontro – quinta-feira - 03/02/11

Texto: Livro 
Os bárbaros – Ensaio sobre a mutação 

NOTA DO EDITOR ITALIANO
Esta edição contém as 30 publicações de Alessandro Baricco no periódico La Republica de 12 de maio a 21 de outubro de 2006.

NOTA DO AUTOR
...”um trabalho feito diante dos olhos dos leitores, mais preocupado com a urgência de pensar que pela prudência de publicar”.

1- Sobrepor a urgência de pensar à prudência necessária para publicar ressoa para mim como uma metáfora da urgência encontrada na clínica (e porque não na vida) de responder. Lacan, quando indagado por Chomsky, em na Universidade de Yale, sobre onde ele localizava o pensamento, respondeu: “nos pés”. E mais, disse que havia analisado inúmeros resultados de mapeamento cerebral e não havia encontrado aí a menor sombra de algo que pudesse ser “pensamentos”.
 “O BRAÇO QUE SE CONVERTEU EM MEMBRANA QUE OS PEIXES POSSUEM  PARA NADAR – QUE EU VOU CHAMAR DE barbatana-  TALVEZ NÃO SEJA UM CÂNCER, TALVEZ SEJA O PRINCIPÍO DE UM PEIXE”.
 

2- Isso que eu vejo talvez não seja alcoolismo, nem depressão, nem compulsão, nem bipolaridade... isso que eu vejo talvez seja o sinal de algo que está se transformando, apenas isso. E, na medida em que meus olhos dimensionam para o outro algo dele, talvez com meu olhar eu possa fazer companhia para aquele que, em transição, não sabe bem ainda onde está. Se no meu olhar não houver medo nem angústia. Se no meu olhar houver desejo de olhar sem dar sentido, sem interpretar, sem achatar ou enquadrar o outro. Já basta ele mesmo dando sentido e nomeando moralmente ou patologicamente a si mesmo. Que eu fique fora disso. Mesmo assim, talvez, talvez haja uma chance. Que eu não atrapalhe. 
“Custa muito esforço compreender o próprio pedaço, e assim não restam muitas forças para compreender o resto do campo”. 

3- “Compreender” o próprio pedaço. Tarefa minha no que me diz respeito. Um analista se faz na sua análise pessoal. O termo “compreender” vai ganhar em Baricco outros desdobramentos, aliás, como quase todas as idéias colocadas. Podemos fazer um desdobramento também na via da análise pessoal, acompanhando o tom do texto.

     “Talvez em cada pedaço, se alguém é capaz de lê-lo, se encontre o resto do campo.”

4- Em mim posso encontrar um pouco de cada coisa que assusta, horroriza, causa náuseas, quando vistas por mim em outro semelhante. A diferença pode estar no que eu e ele fazemos com isso que nos habita. E vice versa. Posso encontrar um pouco em mim do que brilha, encanta, seduz vindo do outro. E a diferença cai no mesmo caso.
     O que Baricco gostaria de compreender: em que consiste a mutação que ele vê ao seu redor.
     Pela riqueza do que se segue, mantenho a citação como suporte para essa introdução ao trabalho que estamos fazendo com o livro.
     Se tivesse que resumi-la, diria o seguinte:
     “(…) todo mundo percebe, no ambiente, um incompreensível apocalipse iminente; e, por todas as partes, esta voz que corre: os bárbaros estão chegando. Vejo mentes refinadas sondarem a chegada da invasão com os olhos cravados no horizonte da televisão. Professores competentes, do alto de suas cátedras, medem nos silêncios de seus alunos as ruínas que foram deixadas pela passagem de uma horda que, de fato, ninguém conseguiu, no entanto, ver. E em torno do que se escreve ou se imagina transparece o olhar perdido de exegetas que, pesarosos, falam de uma terra saqueada por depredadores sem cultura e sem história.

OS BÁRBAROS, AQUI ESTÃO.

     (...) Não estão todos loucos. Vêem algo que existe. Mas o que existe eu não consigo contemplar com esses mesmos olhos. Há algo que não me encaixa. 

     Por regra geral se luta para controlar os pontos estratégicos do mapa. Mas aqui, de uma forma mais radical, parece que os agressores estão fazendo algo muito mais profundo: estão mudando o mapa. Talvez já o tenham mudado. Deve ter ocorrido o mesmo naqueles benditos anos em que, por exemplo, nasceu a Ilustração, ou no tempo em que o mundo inteiro se descobriu, de repente, romântico. Não se tratava de movimentos de tropas nem tampouco de filhos que assassinam seus pais. Eram mutantes que substituíam uma paisagem por outra, e que ali fundavam seu habitat.
     Talvez seja um momento desses. E esses a que chamamos bárbaros são uma nova espécie, que têm guelras atrás das orelhas e que decidiram viver embaixo d’água. É óbvio que nós, desde fora, com nossos pulmõezinhos, temos a impressão de que se trata de um apocalipse iminente. Onde esta gente pode respirar, nós, nós morremos. E quando vemos nossos filhos ansiando pela água, temos medo por eles, e cegamente nos lançamos contra aquilo que unicamente somos capazes de ver, isto é, a sombra de uma horda bárbara que se aproxima. Enquanto isso, essas crianças, sob nossas asas, respiram já com dificuldade, rasgando-se por trás das orelhas, como se ali houvesse algo que necessitasse ser liberado.
     É então quando me vem a vontade de compreender. Não sei, talvez tenha algo a ver com esta curiosa asma que cada vez mais freqüentemente me assalta, e essa estranha inclinação a nadar bastante tempo embaixo da água, justamente até o ponto em  que não encontro em mim umas guelras capazes de salvar-me.
     Enfim. Eu gostaria de olhar essas guelras de perto. E estudar esse animal que está se distanciando da terra, e que está se convertendo em peixe. Eu gostaria de examinar a mutação, não para explicar sua origem (isso está fora do meu alcance), mas sim para conseguir, ainda que seja de longe, desenhá-la. Como um naturalista de antigamente, que desenha em seu caderno a nova espécie descoberta em uma ilhazinha australiana. Hoje eu abri o caderno.”

5- Sim, os bárbaros aquí estão. Para onde quer que eu olhe, eu os vejo, mas não os vejo com os mesmos olhos. Quais são os “mesmos olhos”? São os olhos alarmistas, os olhos que revistam, vasculham, olhos que julgam, enquadram, olhos embaçados pelos olhares seja da ciência, da religião, da moral, seja da psicologia, do senso comum, da mídia ou  do especialista. O outro olhar não usa essas lentes. Ele olha… para desenhar. Por enguanto…

6- Onde essa gente pode respirar… onde a diferença aparece… eu não queria morrer… e se possível, viva, apontar para a vida.  
     “Um livro é uma viagem para caminhantes pacientes”
      Isso que quero compreender exige paciência.


Elisabeth Almeida

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