quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Reflexões a partir de um filme: O Tempo que Resta



         Um jovem fotógrafo, num momento muito bom de sua vida profissional, recebe o diagnóstico de uma doença já em fase terminal. Depois do impacto inicial, faz uma escolha: viver da maneira mais interessante possível, e sem dramas, o tempo que lhe resta.
         Por mais que a tristeza se apresente, aquilo que poderia se colocar dramaticamente é substituído pelas escolhas e pela entrega a viver de um modo que nos dá muito o que pensar.
         O jovem retoma os aspectos da sua vida com um olhar sem pudor, sem compaixão, sem mediação, sem meio-termo, sem contemporizações.
         Permite-se dizer o que pensa, perguntar o que quer, fazer o que não esperava fazer, permite-se, enfim, colocar-se em outra posição na vida.
         Depois de acompanhar os movimentos do personagem, o filme nos leva à sua chegada em uma praia. Apesar da sugestão de que ele vai se matar no mar, o que vemos é ele tomar um último e prazeroso banho de mar, depois do qual se deita na areia em meio aos outros banhistas.
         Ao pôr do sol, todos juntam suas coisas e partem. Ele não se move. Está tudo terminado, está morto.
         Ficamos escutando o ruído das ondas, enquanto escurece.
         Destaco a questão da existência de uma diferença radical entre viver sem que a data da morte esteja marcada e viver uma vida cuja interrupção tem sua data anunciada, como era o caso do personagem deste filme. Evidentemente, são duas experiências muito diferentes.
         Por exemplo, só sabemos que um encontro foi o último, depois do encontro. E, mesmo assim, só podemos saber disso se sobrevivemos a esse encontro e se o outro se foi. Ou seja, não dá para viver, cotidianamente, como se fosse a última vez. Porém, isso não anula aquilo que chamarei aqui de “amor ao tempo que resta”.
         Freud utilizou a palavra “procrastinação” para dizer do conhecido “deixa pra depois” – que contraponho ao “amor ao tempo” – sob a forma da responsabilidade com o que se deseja e do compromisso com a ação.
         Trata-se da sustentação do desejo em contraposição à possibilidade sempre presente, em maior ou menor grau, de usar os acontecimentos que nos atravessam como suportes ao adiamento, à procrastinação – que são formas de não assumir a responsabilidade pelo próprio desejo.
         Nesse sentido, o que o filme nos mostra é uma lida com o tempo e com a responsabilidade pela ação que anula uma pergunta bastante recorrente: – Por que eu não fiz o que eu queria, naquele momento?
         Esse momento lamentado já é sempre passado, inacessível a qualquer ação.
         Penso que o “amor ao tempo” pode dar sustentação a um compromisso com a ação. Num determinado sentido, tudo o que temos é o tempo. O tempo que resta.
         Nessa dimensão da finitude, da transitoriedade, podemos pensar o amor como ato e o ato como amor. Em nome do amor ao tempo.
         “Amor ao tempo” não é necessariamente um amor contemplativo, passivo. O tempo não me parece ser algo para ser aproveitado em si mesmo, porque, para cada um de nós, ele é sempre o tempo que resta.
         A idéia de que deixando para depois se ganha tempo ou a idéia de que fazendo agora se aproveita o tempo, idéias de “ganhar e “aproveitar” são duas idéias banalizadas. Penso que o tempo escapa destas possibilidades, destes registros. Assim, precipitar a ação ou procrastinar são, ao meu ver, duas vertentes significativas de relação com o tempo, ambas com conseqüências distintas dentro da experiência humana.
         O amor ao tempo que resta pode nos lançar numa dimensão que empurra a ação, uma ação que concerne ao desejo sob a forma do compromisso e da responsabilidade. É a posição que o personagem do filme acaba por assumir, sabendo do tempo que lhe resta. Ela é diferente da posição do poeta Rilke, que acompanhava Freud num passeio, num lindo dia de verão – que Freud assim a descreveu:

“O poeta admirava a beleza do cenário que nos rodeava, porém não se alegrava com ela. Perturbava-o o pensamento de que toda aquela beleza estava condenada à extinção, pois desaparecia no inverno, e assim também toda beleza humana e tudo de belo e nobre que os homens criaram ou poderiam criar. Tudo o mais que, de outro modo, ele teria AMADO e admirado, lhe parecia despojado de valor pela transitoriedade que era o destino de tudo.” (FREUD, A transitoriedade,1916)

         Em contraposição a essa posição do poeta, Freud afirma o valor das coisas justamente por sua transitoriedade, seu “valor de raridade no tempo”.
         Assim, podemos pensar que amar o tempo é dar-se conta de que sempre há uma limitação à possibilidade de desfrutar das coisas nele.
         Talvez, a melhor maneira de responder a essa limitação seja comprometer-se com seu desejo e sua ação pelo tempo que nos resta.

*Artigo também publicado na Gazeta de Varginha em 29/11/11.

Um comentário:

  1. Existe um coro de lamentação sobre a rapidez com que o tempo passa,e com a falta dele, mas vc conseguiu dizer de uma forma incisiva,clara e direta do "amor ao tempo".Penso que ao fazer do tempo um caminho para realizar na vida os desejos,para sonhar,para viver e sentir que valeu a pena,pra não deixar pra depois,ai sim, o tempo dá mas não sobra...cada momento tem seu destino,mariahelena

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