domingo, 13 de março de 2011

No desamparo dos deuses, Medéia diz a quê vem

E você veio, Medéia. Com toda a vontade que tenho de chamar-te de “tu”, e dizer-te coisas e coisas, vou chamá-la por “você”, porque esteve muito próxima de nós, agiu sobre nós e nós conversamos com você.
Indico por onde passou nossa conversa. No início, antes de você chegar, estávamos conversando com Diderot e sua distinção entre a sensibilidade e o sentir. Os sentimentos (ou “afetos”, como os chamamos na psicanálise), colocados ao lado da nossa função de julgamento, estão sempre atrelados a algo, a um porquê. “Afetados” por algo, sentimos tristeza, alegria, raiva, vergonha etc.
Distinguida por Lacan como “o único afeto que não mente”, a angústia entra em cena. Precisávamos passar por essas trilhas para poder conversar com você.
            A angústia é aquilo que experimentamos no corpo e nos vemos incapazes de dar um sentido a ela e, nesse momento, a nós mesmos e à vida.
No sentimento, eu penso. Na angústia, eu experimento. Posso até usar o pensamento, usar o julgamento, para tentar contê-la. Mas ela em si não consegue ser apreendida pela palavra, porque é como um soco no estômago –é um impacto no corpo.
Levantamos questões sobre pessoas que parecem ser mais angustiadas que outras, e sobre outras, que parecem ser menos angustiadas; sobre a relação entre o muito/pouco de angústia e o muito/ pouco querer saber de si.
            Passamos pela relação da angústia com o real – de Lacan – nas experiências que temos na vida.  “Encontros com o real”, onde algo nos surpreende e bate no corpo, experiências onde somos tomados pelo inexplicável, pelo indizível, pelo inapreensível.
           Certamente tentamos enlaçar esses momentos com palavras, fazer articulações com experiências passadas e inclusive atuais, numa tentativa de amenizar o impacto, de iludir aquilo que foi capturado de nós naquela experiência. Tudo isso em vão.
  
            Não há mediação, nem medicação. Experiência pura, pode levar um tempo, mas, se prosseguirmos, vai nos levar ao impossível de dizer. Vai nos levar à presentificação da morte em vida, presentificação do impossível, frente ao qual, só nos resta continuar inventando, seguir criando, apesar de e por causa dos impossíveis. Dentre esses “impossíveis”, o impossível de mim mesmo, o impossível de apreender um sentido que me acolha.    Daí para frente, pode-se seguir sem ilusão e sem tristezas, sem revoltas e sem culpas e, no desamparo desses deuses, tomando para si as escolhas e as apostas, inventando, amando, brincando.   
            Há um caminho a se percorrer até aí. É curioso porque, primeiro colocamos o tempo do “querer ou não querer saber de si”. E o colocamos como pré-condição ao tempo de concluir sobre o impossível de apreender “um sentido que me acolha”.
 “Querer saber de si” é algo diferente de “querer saber das outras coisas”, diferente de outros saberes. “Querer saber de si” é dispor-se a esvaziar-se. Quanto mais tentamos saber de nós, mais nos deparamos com uma tarefa impossível, mais nos damos conta de que somos habitados por múltiplos saberes sobre nós, dados pelo outro, imaginados por nós, colados em nós, esperados de nós. Nenhum deles nos representa realmente. Nenhum deles, nem a somatória deles, nos acalma e nos ampara. Aliás, na maioria das vezes, nos confunde mais ainda. Então, “querer saber de si” é estar disposto a perder. “Querer saber das coisas” é somar.
Quando alguém diz “quero me conhecer” é como querer fazer uma enciclopédia de si. Na plenitude das identidades, dos “eu sou”, responde-se via Google, “Google eu”. Basta um clique. Quando se perde, perde, perde,... vai fazer o quê? Inventar, inventar, inventar,... Inventar é o único prazer que se pode ter no inferno ou no paraíso que seja.
Por esses caminhos andamos, amiga Medéia, até que, claro, tendo-a tão próxima, chegamos nas pobres criancinhas. Ainda não exatamente nas suas, mas no fato de que elas, de ingênuas, não têm coisa alguma.
            Sabemos que você está viva até hoje. Ao que tudo indica, vai viver muito ainda. De seus ciúmes, falamos um pouco na semana anterior, quando do seu encontro com Narciso. Do seu ódio mortífero não falamos ainda. Uma coisa é certa, em nosso estudo sobre “As patologias do Amor”, encontramos muitas Medéias que queimam os filhos, ou seus amores, e ninguém sente o cheiro da fumaça.
Nesse terceiro encontro, você tomou a forma de um personagem muito atual, muito discutido, o chamado: “pedófilo”. Como pode ver, há uma relação entre matar crianças (amadas) e submetê-las a uma abordagem sexual.
O que sabemos, desde Freud, é que uma criança, ao receber os cuidados maternos, sejam eles alimentares, higiênicos ou mesmo de proteção e carinho, vai sendo erotizada em seu corpo, a partir destes contatos. Isso mesmo, a mãe, ou a pessoa que cuida do bebê, ao tocá-la para alimentá-la, transforma sua boca em zona erógina, pois por ali a criança fica exposta a uma experiência de satisfação, de prazer mesmo. Ao limpá-la, marca seu corpo da mesma maneira. Ao cuidá-la, também. É isso que permitirá, mais tarde, que esse corpo tenha outras experiências de prazer, já com um parceiro – se tudo isso que vem da mãe puder ser transposto para um outro.
            Temos então um corpo de criança erotizado. Se um adulto, no caso já não mais com o sentido de cuidar, toca sexualmente essa criança, num primeiro momento, ela pode ter uma experiência de prazer. Seu corpo já foi marcado. Seu corpo responde com excitação a esse contato posterior. E pode sim responder com prazer.
            Estamos num território delicado. Sabemos disso, mas vamos percorrê-lo com o cuidado necessário.
            Mais tarde, essa criança será exposta aos dispositivos simbólicos, aos aparatos que dão sustentação à civilização, aos processos de socialização, à cultura. Faz parte desta nossa cultura a proteção da criança frente às investidas sexuais de um adulto. E é justamente pelo fato de existir esses dispositivos que ela poderá, posteriormente, sentir-se agredida por aquele ato que um dia foi experimentado como simplesmente prazeroso. É no momento em que um sentido é dado ao vivido, que ela encontra um lugar para ela naquilo. Antes, não. Antes não havia para ela um “lugar” de abusada, de agredida, de violada. “Antes”, refere-se ao momento em que a experiência se dá. “Depois”, refere-se ao momento em que uma significação é atribuída, que pode ser imediatamente ou algum tempo depois, ou muito tempo depois. Nossa questão não está absolutamente em propor uma revisão das proibições que possibilitam nossa civilização. Não somos animais, desde que falamos, e, sabemos, a cultura tem um preço necessário.
O que nos interessa discutir é clínico. A partir do momento em que alguém é submetido ao sentido, em que alguém pode inserir uma experiência de prazer no âmbito de haver sofrido uma agressão, esse alguém passa a ocupar um lugar muito privilegiado em nossa cultura, que é o contraponto do agressor, o lugar da vítima.
            O lugar da vítima é uma conseqüência da junção da experiência com a significação dada posteriormente. E, conseqüentemente, é um lugar de indignação contra o mundo e, curioso que possa parecer, sempre acompanhado de culpa.  Poderíamos nos perguntar sobre essa culpa e sobre a recorrente má lida com a sexualidade nestes casos específicos.
Da mesma maneira que um adulto que “abusa ”sexualmente de crianças fica marcado como um potencial perigo recorrente, deveríamos nos dar conta de que a vítima, por sua vez, também se instala na possibilidade de não saber viver senão como vítima. Bem ao sabor do conhecido refrão de um hino de um time de futebol: “uma vez (...), (...) até morrer”.
O prazer que está inscrito no corpo está fora de qualquer significação. Atrelado a uma significação, seja ela qual for, esse prazer será problematizado – seja do lado de um chamado “agressor’, seja do lado de um chamado “vítima”. Ao ser problematizado, quase seguramente será fixado em posições que exigirão repetição.
Uma aposta clínica seria a de alguém que diz “fiz”, “fizeram”... então, tá. Ao perceber-se corpo, talvez se possa desvincular-se do horror que a significação atrelou. A insistência na significação dá consistência violenta ao que, antes, foi puro corpo.
Fazer uma análise é destecer significações.
            É diferente de se estar cinicamente na civilização. É estar nela, saber que se paga um preço, saber soltar o fio quando este estiver servindo para manter posições de violência ou de vitimização.

            Continuamos na próxima semana.  
    

(a partir do encontro de terça, dia 22 de fevereiro de 2011, com a colaboração de Ana Paula Guimarães Garcia)

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