terça-feira, 17 de julho de 2012

Estranhezas

            
           Por suposto, conforme reza a cartilha do bom senso, quem está aflito quer ser acalmado, o insone quer dormir, o desesperado quer paz, o ocupado quer descanso, o doente quer sarar, o angustiado quer alívio. Nem sempre. Aliás, pouquíssimas vezes. Na verdade, na maioria das vezes, quando acalmamos alguém, ocorre desta pessoa achar que estamos subestimando sua aflição, que não estamos levando em consideração seu sofrimento, que “pimenta nos olhos do outro não dói”.
            O insone, que acreditamos que precisa dormir, está, embora reclame, firmemente decidido a usar suas noites para tecer seus pesadelos, ao invés de entregar-se aos sonhos – que podem ser de outra ordem.
            O desesperado, este que mobiliza todos ao redor com seu sofrimento atroz, pede muito mais um outro que se compadeça dele, do que um outro que lhe acene com a paz e com o abandono de seu teatro particular – cuja cena só faz sentido se expectadores se desesperarem junto.
            O ocupado, seguramente tem suas razões. Ou é porque quer mesmo fazer tudo que lhe vem à cabeça, ignorando que o dia tem apenas 24 horas, ou necessita de se ocupar para não dar espaço a sentimentos e pensamentos que lhe trarão dor.  
            O doente somente quer sarar se sua doença não lhe trouxer ganhos secundários. Explico: enquanto ele acreditar que, doente, pode ter mais atenção, pode se sentir amado, pode inclusive fazer com que o mundo do outro gire mais devagar – tal como o seu, que por se ocupar da doença, gira em torno de um eixo só – vai sim pedir, procurar, fazer via sacra em consultórios médicos, mas não vai sarar.
            Chegamos ao angustiado. Não muito diferente dos relacionados acima, este também pode ser pensado sob dois prismas. Há realmente o angustiado que está cansado de desperdiçar sua vida com a sombra da angústia que lhe aperta o peito, paralisa suas ações, coloca-o numa dúvida eterna, faz com que se sinta sempre mudando o canal e assistindo ao mesmo filme. Mas há também o angustiado que necessita da angústia do outro para perpetuar a sua. Exercício cruel e manipulador, disfarçado sob um manto de “tenha piedade de mim, me entenda, veja como sou infeliz, veja como tenho razão de achar que tudo está indo pro inferno e eu junto”.
            Penso que esse angustiado que tenta trazer o outro para o balde da sua angústia, que o convida para um mergulho e, possivelmente, para uma cena cinematográfica de afogamento de mãos dadas, requer de nossa parte um cuidado especial. Não com ele, conosco. Quando digo que não com ele é porque tudo que ele pretende é nos levar junto. Ele não pede ajuda, ele pede que afundemos juntos. Fica muito difícil para qualquer um de nós nos posicionar frente a isso. Fica muito difícil não cair nas malhas desta demanda. É quase inacreditável imaginar (quanto mais se dar conta) de que alguém nos pede para ir junto com ele aos infernos. De que alguém tenha esta perspectiva para si. De que alguém não queira “seu bem”. Tão acostumados estamos com as idéias pobres de que todos queremos o melhor para nós mesmos e para os outros, de que somos bons, pacíficos, amorosos, cheios de boas intenções e que visamos a “felicidade”.
            Penso na chance que o outro angustiado – aquele que está cansado de desperdiçar sua vida – tem e nos dá. A chance que ele tem vai fazer com que suporte pouco a compaixão do outro. Ele vai pedir muito mais a aposta fora dos padrões, a lida singular, a suportabilidade da aflição, da insônia, do desespero, dos excessos. Ele vai ter que lidar com a incompreensão do outro, que provavelmente vai achá-lo “difícil”, “exigente”, “pouco amoroso”, “intolerante”, “insensível”. Tudo isso e mais um pouco. É o preço que alguém paga para não cair na armadilha de desperdiçar sua vida, para fazer escolhas que valham a pena para si – e conseqüentemente para o outro, caso esse outro não adore infernos. É o preço que alguém paga para sair fora da cartilha do bom senso e das respostas inúteis que já vêm prontas, como se caídas do céu e transmitidas pelos sábios de todas as espécies. E acredito, vai lhe abrir outras portas.

Elisabeth Almeida – psicanalista
bethxxxalm@yahoo.com.br

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